Quem ganha 30 mil por mes é rico

Um estudo publicado no mês passado na França tentou estabelecer o limiar acima do qual alguém deve ser considerado rico no país. De acordo com o Observatório das Desigualdades, é rico quem ganha o dobro da mediana dos rendimentos e está, assim, no extrato dos 7% mais ricos: aqueles com rendimento líquido de cerca de R$ 20 mil mensais, se solteiro, ou de R$ 30 mil mensais, se viver em casal.

Uma reportagem da Rádio França Internacional em português divulgou o estudo. Nos comentários nas mídias sociais, descobrimos que muitos brasileiros que se consideram de classe média e têm salários mensais desse valor ou um pouco acima se surpreenderam ao saber que seriam considerados ricos num dos países mais ricos do mundo.

Como isso é possível? A explicação é dupla: na França, por causa das políticas de combate à desigualdade, os ricos são menos ricos. No Brasil, quem tem rendimento elevado se sentem menos rico por ter de adquirir serviços privados.

Quem ganha R$ 30 mil no Brasil não está entre os 7% mais ricos, mas entre o 1% mais rico. E muitos desses brasileiros não se sentem ricos, mas de “classe média”, apenas pagando as contas do mês, com sobras que não consideram folgadas.

Um casal que ganha R$ 30 mil pode gastar a maior parte disso com contas mensais como aluguel ou prestação de apartamento em bairro nobre, prestação de carro “confortável”, boas escolas para os filhos, um plano de saúde que cubra os melhores hospitais e uma rotina de viajar e ir a restaurantes. A dinâmica de ter pouco patrimônio e contas mensais que consomem a maior parte da renda não os faz se sentirem ricos.

Mas, objetivamente, num país em que 90% dos trabalhadores têm renda inferior a R$ 3.500 reais, quem ganha R$ 20 mil ou R$ 30 mil é rico — muito rico. É essa profunda diferença entre a realidade objetiva, capturada pelas estatísticas, e a avaliação subjetiva das pessoas que trava o enfrentamento político da desigualdade social.

Os brasileiros ricos não se sentem no topo da pirâmide. Sempre acham que os acima deles é que têm de se sacrificar. Só existe um jeito de reduzir uma desigualdade grande como a brasileira: os ricos e a classe média têm de pagar mais imposto, e o Estado tem de oferecer programas sociais abrangentes como escolas, hospitais e assistência social para redistribuir os recursos arrecadados.

Para os brasileiros que ganham R$ 10 mil, R$ 20 mil ou R$ 30 mil, quem tem de pagar esses impostos elevados não são eles, mas os que ganham R$ 50 mil ou R$ 100 mil — e estes, claro, querem empurrar a conta apenas para os multimilionários e bilionários.

Como os ricos e as pessoas que se veem como “classe média” são na verdade muito influentes politicamente, travam o debate do combate à desigualdade. Em oito anos de governos do PSDB, que reivindica sensibilidade social, e 13 do PT, que se diz de esquerda, esse problema fundamental não foi enfrentado. A construção de um sistema tributário progressivo segue sem destaque na agenda política há décadas.

Não é agradável pagar mais imposto. É um ônus que ninguém quer. Mas uma sociedade menos desigual é seguramente um melhor lugar para viver, como sabem os brasileiros que viajam à Europa.

Existe uma troca, um trade off, entre perder renda pagando mais imposto e o benefício de desfrutar uma vida tranquila numa sociedade mais justa. Hoje, além dos impostos, essa “classe média” paga escola particular, saúde particular e segurança particular nos condomínios e nos serviços. Os impostos necessários para reduzir a desigualdade e oferecer serviços públicos decentes a todos são menos do que ela gasta com esses serviços privados.

É melhor pagar mais imposto e ter os filhos estudando numa boa escola pública, como as de Portugal ou Espanha, do que temer o futuro e ter de matriculá-los numa escola privada de elite, murada e segregada, em Higienópolis ou no Leblon.

Já passou da hora de o Brasil fazer um pacto para um país mais justo. Faz parte desse pacto, é claro, que o Estado gaste melhor o dinheiro que arrecada e que eliminemos os privilégios vergonhosos que ainda existem nele. Os ricos incontestáveis e os que pertencem a essa “classe média” —entre eles eu e você, leitor do jornal —resistiremos um pouco e espernearemos, porque é muito ruim ter de pagar imposto e perder renda. Mas, se o pacto for bem feito, o resultado valerá a pena.

Um ano atrás, o ator Bruno Gagliasso escreveu em suas redes sociais que precisava "bater um papo com você, meu irmão branco. Um papo reto aqui entre nós que não somos o topo da pirâmide, mas estamos bem distantes da base".

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Nos comentários, os internautas questionaram o topo da pirâmide ao qual o artista se referia. Se ele, dono de uma pousada na ilha de Fernando de Noronha, de restaurantes e de uma marca própria de roupas não estava no topo, quem está?

Mas não é preciso ir tão longe. A renda mensal média de quem está entre os 5% mais ricos no Brasil é de R$ 10.313,00, conforme os dados da Pnad Contínua - Rendimento de todas as fontes 2019, do IBGE. O corte para estar no 1%, ou seja, com renda média superior à de 99% da população brasileira adulta, é de R$ 28.659,00.

A base da pirâmide é relativamente homogênea — 90% dos brasileiros têm renda inferior a R$ 3,5 mil por mês (R$ 3.422,00) e 70% ganham até dois salários mínimos (R$ 1.871,00, para um salário mínimo de R$ 998,00 em 2019), ainda segundo o levantamento.

Dentro do grupo dos mais ricos, contudo, o espectro é bem diversificado.

Tomando a faixa da pesquisa do IBGE, de R$ 28 mil, o grupo dos 1% mais ricos inclui desde alguns profissionais liberais como advogados e engenheiros e a elite do funcionalismo público — promotores, procuradores, auditores da Receita —, a empresários, artistas e, finalmente, os milionários e bilionários que aparecem nas listas dos mais ricos do país.

Rico, eu?

Talvez por isso, muitos não se enxerguem como parte do topo da pirâmide.

Quem ganha 30 mil por mes é rico

'Topo da pirâmide' está geralmente ligado à ideia de ostentação - mas nem sempre é assim

Imagem: Getty Images

A pesquisa Nós e As Desigualdades, realizada pela Oxfam em parceria com o Instituto Datafolha, pergunta desde 2017 aos brasileiros, em uma escala de 0 a 100, se eles se acham "muito pobres ou muito ricos".

As três edições do levantamento realizadas até agora apontam na mesma direção: quem está no topo pode ter uma visão bastante distorcida da realidade. A pesquisa de dezembro de 2020 apontou que, entre aqueles com renda superior a 5 salários mínimos, 75% disseram achar fazer parte da metade mais pobre do país.

Para se estar entre os 10% mais ricos do país, contudo, a renda média parte de três salários mínimos, de acordo com os parâmetros da pesquisa.

Isso porque o Brasil é um país em que muita gente vive com muito pouco. Para se estar entre os "mais ricos", do ponto de vista da distribuição de renda, não é preciso tanto.

Quem ganha 30 mil por mes é rico

Pobreza e desigualdade fazem com que renda média do brasileiro seja baixa

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Síndrome da classe média

Esse descolamento entre percepção e realidade, entretanto, não é exclusividade do Brasil.

"Os estudos sobre percepção mostram que as pessoas tendem a se classificar no meio, como classe média. Pouca gente se classifica como pobre ou como rica", diz o professor de Princeton e pesquisador da desigualdade Marcelo Medeiros.

Mas por quê?

Estudiosa do tema, Asli Cansunar, professora do departamento de Ciência Política na Universidade de Washington, nos EUA, ressalta que esses resultados são observados pelo menos desde os anos 1970.

A explicação é relativamente simples. A grande maioria das pessoas não consome informações sobre estatísticas econômicas no dia a dia. Na falta de dados técnicos, a maneira de colocar sentido no mundo é por meio de comparações — é olhar em volta e se comparar aos amigos, familiares, às celebridades na TV ou, mais recentemente, aos influencers do Instagram.

O problema, nesse caso, é que a amostra é enviesada, já que o cotidiano está, de maneira geral, dominado por imagens que nos levam a associar o topo da pirâmide à ostentação: alguém que dirige um carro importado, que faz viagens internacionais, que consome produtos de luxo.

"E quando você se compara a essas pessoas, claro, vai dizer: 'Imagina, eu não sou rico, sou classe média! Sou apenas alguém que está se esforçando para comprar um carro novo e conseguir viajar nas férias'. Na vida real, entretanto, se você olhar as estatísticas, vai ver que está ganhando muito mais do que muita gente no seu entorno", destaca a pesquisadora.

Quem ganha 30 mil por mes é rico

'Linha de riqueza' pode ser um conceito subjetivo

Imagem: Getty Images

Mas então quem está no 'topo' é rico?

Para além das percepções individuais, a própria noção de riqueza é subjetiva. Não há um consenso acadêmico sobre o que seria uma "linha de riqueza", por exemplo. Ser rico é ter dinheiro suficiente para poder parar de trabalhar? É morar em um determinado bairro da cidade? É ter um carro importado?

"A definição do que é ser rico é uma ferramenta, depende do que se quer fazer com ela", pontua Medeiros.

Cansunar também ressalta que a noção de riqueza é relativa - e pode variar inclusive dentro de um mesmo país. No Reino Unido, ela exemplifica, ganhar mais do que as 80 mil libras por ano (R$ 590 mil), que coloca alguém entre o 1% no topo da pirâmide, não necessariamente significa uma vida confortável em Londres para quem tem de pagar aluguel.

A própria pirâmide de rendimentos — que, aliás, não contabiliza a riqueza estocada em patrimônio, a recebida em herança — pode variar, a depender da metodologia. O IBGE usa suas pesquisas domiciliares, que, tradicionalmente, acabam subestimando a renda de quem está no topo.

Seja por uma questão ligada à segurança, por constrangimento ou porque realmente não sabem quanto ganham na ponta do lápis, os mais ricos acabam informando valores menores aos recenseadores do instituto.

"O IBGE faz um trabalho fantástico, mas esse é um fenômeno que acontece no mundo inteiro. Então as pesquisas do IBGE captam muito bem, vamos dizer, os 90% mais pobres da população", pontua o sociólogo e pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) Pedro Ferreira de Souza.

"Nos 10% mais ricos, quanto mais para cima, maior a subestimação", afirma o especialista, que é autor do livro "Uma História da Desigualdade", vencedor do prêmio Jabuti em 2019.

Por isso, pesquisadores como Souza utilizam também os dados da Receita Federal do Imposto de Renda, que captam melhor a renda que vem de investimento e aplicações financeiras, por exemplo.

Entre os 5% mais ricos, conforme os cálculos que ele fez com dados de 2015, a renda média apontada pelo levantamento do IBGE era 25% menor do que usando o IRPF. Para o 1% mais rico, a linha de corte nos dados do IBGE era 45% menor do que no IRPF —pouco menos da metade.

Ainda que a linha de corte, na prática, seja provavelmente superior aos R$ 28 mil apontados pela Pnad Contínua, o topo da pirâmide ainda é formado pelo grupo heterogêneo que inclui dos "super ricos" a profissionais liberais e parte do funcionalismo público.

O teto para o salário dos servidores federais é hoje de R$ 39 mil. Muitos, contudo, recebem valores superiores com a inclusão de benefícios como auxílio alimentação e moradia.

"Se você ganha um salário muito alto, e em alguns casos muito acima do teto — principalmente no poder judiciário, a gente vê que é comum — com o tempo vai acumular renda e isso vai virar rendimento de capital", acrescenta o sociólogo.

"O público leigo às vezes acha que todo funcionário público, ou pelo menos todo funcionário público federal, está no 1%. Tem um exagero grande aí, mas também não é de todo falso, certamente tem muita gente da elite do funcionalismo e, vamos ser sinceros, da elite política [no 1%]."

Como estudioso da desigualdade, encontrada no Brasil em nível "extremo", o pesquisador acredita que esse possa ser um bom parâmetro para se definir riqueza no Brasil.

"Onde está a concentração de renda que torna o Brasil muito diferente da Europa? Bom, está no topo. É ali o 1%, os 5% mais ricos, talvez em algum grau você possa falar que são os 10% mais ricos, alguma coisa assim. Mas a concentração grande mesmo é bem no topo, então fazer esse recorte — falar em 1% da população, 5% da população, acho que não tem como dizer que não é rico, né? Isso exigiria umas cambalhotas retóricas que não são muito fáceis", avalia Souza.

Por que isso importa?

Chamar atenção para o topo, na avaliação do sociólogo, é importante especialmente por dois motivos.

Primeiro, por uma questão política. Quando uma fração pequena da população concentra um percentual grande dos recursos, ela tende a "usar todos os meios possíveis para converter o poder econômico em influência política e, assim, conseguir enriquecer ainda mais".

"Isso não é uma questão necessariamente de caráter individual, mas uma dinâmica social que a gente vê em diversos países — e atrapalha o funcionamento da democracia."

Segundo, ele acrescenta, porque entender quem tem mais abre caminho para o desenvolvimento de políticas voltadas para melhorar o bem-estar dos mais pobres, como o financiamento de serviços públicos de transporte e saúde para atender essa população.

"O jeito mais eficiente de fazer isso é pegar de quem tem mais, de onde o dinheiro tá em tese sobrando — pelo menos em algum grau, ninguém está falando em confisco, mas do padrão de Estados Unidos e Europa —, tributar onde tem mais dinheiro concentrado e gastar onde tem mais necessidades", avalia.

"E para isso a gente precisa conhecer os mais ricos — e aí não adianta você também ter uma definição de riqueza que seja só o Neymar, né?"

Quem ganha 30 mil e rico?

Quem ganha R$ 30 mil no Brasil não está entre os 7% mais ricos, mas entre o 1% mais rico. E muitos desses brasileiros não se sentem ricos, mas de “classe média”, apenas pagando as contas do mês, com sobras que não consideram folgadas.

Quantos mil por mês é considerado rico?

Todas as famílias brasileiras com rendimentos mensais acima de R$ 8.518,04 são ricas, revela estudo inédito do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Quantos da população ganha mais de 30 mil?

“Quem ganha mais de R$ 20 mil ou R$ 30 mil por mês, está na faixa dos 2% ou 1% mais ricos, respectivamente.” Essa faixa de renda dos 2% e 1% precisa ser desmembrada para melhor ser entendida e enquadrada. Nessa faixa tem juizes, médicos, donos de empresas, jogadores de futebol, atores. Como taxa-los e de que forma?

Quem ganha 25 mil e rico?

Segundo dados do IBGE de 2020, os brasileiros com renda média mensal superior a R$ 15.816 estão na lista de mais ricos do país. Eu sei que uma vaga com salário de R$ 25 mil parece uma grande oportunidade e realmente é considerando a realidade brasileira.