Reflita sobre as diferenças entre crescimento econômico e desenvolvimento socioeconômico

ARTIGO

Desenvolvimento sócio-econômico brasileiro: questões para a década de 80* * Uma versão anterior deste documento foi preparada para a Comissão de Relações Estados Unidos-Brasil. Os pontos de vista e interpretações aqui apresentados são do autor e não devem ser atribuídos à Comissão, ao Banco Mundial ou a qualquer indivíduo agindo em nome deles. O autor gostaria de agradecer a Peter Cleaves, Micbael Crowe, Tom Faner, Alan Gebb, Peter Hakim, Margaret Daly Hayes, Fred Levy, Ricardo Moran, Adroaldo Moura da Silva, Phyllis Pomerantz, Joseph Quina, Bruce Ross-Larson, Alfred Stepan, Hamilton Tolosa e Adrian Wood seus valiosos comentários nos rascunhos preliminares.

Peter T. Knight

Economista no Departamento de Planejamento de Políticas e Revisão de Programas do Banco Mundial

1. INTRODUÇÃO

Durante as duas últimas décadas vários países alcançaram crescimento econômico rápido, enquanto a distribuição da renda permaneceu muito desigual. O Brasil tem sido, muitas vezes, citado como exemplo desse tipo de experiência, compartilhado por países como o México, a Malásia, as Filipinas, a Turquia e a Venezuela. A economia brasileira cresceu a uma taxa espetacular de 8,5% ao ano, em termos reais, de 1960 a 1980. Após um período de estabilização econômica no meio da década de 60, vieram os anos do "milagre", quando o crescimento girou em torno de 11,5%, alentado por um ambiente internacional propício, impulsionado por uma recuperação cíclica e estimulado por reformas criativas de política. Desde a crise do petróleo, em 1973, o crescimento desacelerou, girando em tomo de 7,1%.

Embora ainda elevado, o crescimento do Brasil tem sido sustentado somente às custas de uma inflação crescente e empréstimos maciços no exterior. Enquanto a inflação se situava abaixo de 20% em 1973, durante 1980 ela atingiu 110%, o maior nível da história do Brasil e mais que o triplo da taxa média no período 1965-80. Além disso, a dívida externa cresceu em mais de US$40 bilhões entre o final de 1973 e o final de 1980, atingindo um total de mais de US$54 bilhões, a maior entre os países em desenvolvimento. Por volta de abril de 1981, as reservas internacionais do Brasil tinham caído para US$6,3 bilhões, equivalentes ao custo das importações de apenas dois meses.

A perspectiva a médio prazo não é risonha. É provável que, mesmo com a permanência do crescimento rápido das exportações e com a taxa relativamente baixa de crescimento do PIB (5 ou 6% por ano), a conta do serviço da dívida e as importações de petróleo, sozinhas, absorvam o total de ganhos com as exportações pelo menos para os próximos três anos. Essa taxa de crescimento do PIB será, provavelmente, insuficiente para absorver os novos contingentes da força de trabalho - sem se falar na redução do nível de subemprego se o estilo recente de crescimento for mantido. Mas mesmo esse cenário de crescimento mais lento depende de desenvolvimentos da economia internacional. Eventos fora de controle do Brasil - outros aumentos nos preços reais do petróleo, prolongado crescimento mais lento dos países da OCDE, protecionismo crescente nos mercados de exportação do Brasil e acesso restrito aos mercados internacionais de capital - poderiam forçar nova redução na taxa de crescimento econômico.

A contemplação da crise econômica que o Brasil enfrenta leva à pergunta se o Brasil pode alterar sua estratégia de desenvolvimento econômico, de modo a alcançar maior emprego por unidade de capital investido, menor demanda energética por unidade de produção e menos importações por unidade de produção, reestruturando, desse modo, a economia, para levar em conta o maior preço real da energia e o ambiente econômico internacional menos favorável, que provavelmente caracterizarão a década de 80.

Neste trabalho, argumentarei que é expandindo o mercado interno, através de uma série de reformas redistributivas destinadas a satisfazer a demanda latente de milhões de famílias pobres do Brasil por serviços públicos básicos e por bens de salários, que o perfil da demanda final (consumo e investimento) pode ser revertido para atingir esses três objetivos econômicos. Mais ainda, eu argumentarei que o que é plausível no sentido econômico também o é nos sentidos político e social.

Entre importantes elites brasileiras - militares, clero, políticos, tecnocratas, intelectuais e empresários privados - tem-se desenvolvido o consenso de que a "questão social" deve ser atacada, caso se queira atingir a meta amplamente defendida de criar uma sociedade democrática e desenvolvida. Em resposta a fortes pressões de baixo, bem como a seus próprios valores professados, os atuais líderes do Brasil optaram por uma liberalização política gradual e se comprometeram a melhorar as condições de vida dos pobres.

Em princípio, o progresso no rumo da democracia, a solução de graves problemas sociais e o ajuste estrutural da economia ao longo das linhas indicadas se reforçam mutuamente. Uma democratização bem-sucedida viria fortalecer o poder político dos pobres, facilitando então as reformas redistributivas necessárias à reestruturação econômica. É, porém, difícil conceber como o processo de liberalização política, que começou com o Presidente Geisel e se intensificou com o Presidente Figueiredo, poderá persistir por muito tempo sem progressos econômico e social substanciais para aqueles que, como o atual Governo admite publicamente, não obtiveram uma parcela justa do rápido crescimento econômico do Brasil.

Contudo, embora o progresso simultâneo no rumo dos três objetivos possa ser o cenário mais desejável, não é claro, de modo algum, como ele possa ser alcançado. A necessidade de enfrentar problemas econômicos prementes a curto prazo, antes que os setores mais pobres da sociedade brasileira sejam capazes de se organizar para exercerem um papel efetivo na política democrática, poderá colocar um trade-off entre a profundidade das reformas de redistribuição e a extensão da democracia. Por outro lado, embora o progresso no rumo da democracia possa não beneficiar os mais pobres a curto prazo, há, evidentemente, uma grande possibilidade de que uma solução autoritária para os atuais problemas econômicos não represente um progresso social. Ela poderia visar uma repressão da demanda em vez de mudar a estrutura da economia, favorecendo os ricos em vez dos pobres.

O objetivo deste trabalho não é predizer a trilha de desenvolvimento que o Brasil encetará na década de 80, porém mostrar por que uma reorientação do desenvolvimento econômico para atender às necessidades sociais pode ser uma opção viável, tanto política quanto economicamente, e sugerir como a comunidade internacional pode ajudar a torná-la realidade se o Brasil escolher esse caminho. A estratégia aqui sugerida é relevante para outros países de renda média com marcantes desigualdades de renda e recursos humanos relativamente subdesenvolvidos - como Argélia, México, Peru e Turquia, e vários outros países latino-americanos. Tais países têm capacidade financeira para investir mais nos pobres e têm habilidade organizacional necessária para executar tais programas, expandindo simultaneamente o mercado interno de bens de salário, cuja maioria pode ser produzida domesticamente.

Uma vez que os que formulam políticas, no Brasil, estão agindo num contexto que tem raízes históricas, na segunda seção do trabalho se esboçará a natureza dos caminhos intimamente relacionados do desenvolvimento econômico e do desenvolvimento político perseguidos no Brasil desde 1964. São citadas as realizações extraordinárias deste período, bem como o que deixou de ser feito. A terceira seção analisa como as contradições internas no modelo econômico brasileiro pós-64 e os choques econômicos impostos externamente resultaram em mudanças políticas desde 1974. A seguir, discuto as questões-chave no desenvolvimento sócio-econômico que os formuladores de política precisam administrar com sucesso para manter o desenvolvimento político das instituições democráticas. Isto inclui tomar disponíveis os serviços públicos básicos - educação, saúde, planejamento familiar, suplementação alimentar, oferta de água e saneamento - a todos aqueles que não os podem adquirir no mercado; expandir a produção e consumo de bens básicos de salário, tais como comida, roupa, habitações populares e transportes urbanos de massa; proporcionar emprego produtivo a uma força de trabalho crescente; e garantir oferta suficiente de energia. As reformas financeira, fiscal e agrária - que poderiam ajudar a alcançar essas metas - são também delineadas. Numa seção final, discuto modos pelos quais a comunidade internacional poderia ajudar ao Brasil nesses esforços.

2. CARACTERÍSTICAS DO DESENVOLVIMENTO BRASILEIRO PÓS-64

Quatro elementos distinguem o estilo brasileiro de desenvolvimento desde 1964: a clara prioridade dada ao crescimento econômico, com o objetivo de construir no Brasil uma economia moldada na das nações industriais ocidentais desenvolvidas; a exclusão de grandes setores da sociedade brasileira do processo político; a concentração dos benefícios do crescimento, mas com trickle-down significativo, ainda que não uniforme; e um legado de necessidades sociais não-atendidas.

2.1 Prioridade para o crescimento econômico rápido

Os líderes militares que tomaram o poder em 1964 optaram por dar ao crescimento econômico prioridade sobre o desenvolvimento social. Após um período de reforma e estabilização econômica, durante o qual o desempenho do crescimento foi sem brilho, de 1968 a 1973 o PIB per capita do Brasil cresceu a uma taxa média de mais de 8%, quase o dobro da taxa já impressionante de todo o período, desde a II Guerra Mundial. Pela maioria dos padrões de medida do desempenho econômico agregado, o país progrediu extraordinariamente rápido durante esse período.

A partir de 1973, a inflação acelerou e o crescimento arrefece a No entanto, nos últimos 15 anos, o desempenho da economia brasileira foi superior ao de qualquer outro país da América Latina em termos de crescimento do PIB. O PIB real cresceu a 8,5% (5,5% per capita), alcançando o equivalente a mais de US $230 bilhões em 1980 (aproximadamente, US$1.940 per capita), tomando assim a economia nacional do Brasil a décima maior do mundo, aproximadamente igual àquelas da República Popular da China ou do Canadá. O Brasil é também o décimo maior produtor de veículos automotivos, o terceiro maior exportador agrícola e é tido como o sétimo maior exportador de armamentos. A tabela 1 dá alguns números indicativos do processo de crescimento rápido do período 1965-80. Um indício da vulnerabilidade do desempenho econômico do país é produção defasada de energia primária, que cresceu a uma taxa um quarto menor que aquela do consumo de energia entre 1967 e 1980. A deficiência tem sido compensada por importações rapidamente crescentes de petróleo e, em grau muito menor, pelo carvão, embora em 1980, comparado com 1979, o volume das importações de petróleo tenha caído cerca de 9% sob o impacto de medidas de conservação e substituição por produtos alternativos domésticos, notadamente o álcool combustível.

Uma importante meta nacional, compartilhada pelas elites militares e civis dominantes nesse período, era construir no Brasil uma economia moldada naquela das nações industriais ocidentais. Em conseqüência disso, os projetos de desenvolvimento utilizavam muitas vezes as tecnologias mais modernas, tão logo elas pudessem ser trazidas para o Brasil. A política cambial, os incentivos fiscais e o crédito subsidiado reduziam o custo dos bens de capital, enquanto se taxava o uso de mão-de-obra. Se se podiam importar ou desenvolver tecnologias alternativas capazes de fazer uso mais adequado de uma grande força de trabalho subempregada, atingindo simultaneamente a meta do crescimento e fomentando uma distribuição mais equitativa de renda e riqueza, esta era uma questão raramente levantada no Brasil ou em outros países com mercados domésticos menores que seguiam políticas semelhantes, geralmente com menos sucesso.

A adoção de tecnologia das economias mais desenvolvidas envolvia frequentemente escolhas que podiam, com o benefício da visão retrospectiva, ser chamadas de erros, especialmente desde o aumento do preço real da energia. Um exemplo primário é a construção de um sistema de transporte que depende essencialmente de automóveis e caminhões particulares, quando poderia ter sido melhor em termos de eqüidade e mais barato em termos de custo, investir mais em sistemas de transporte urbano de massa, ferrovias e instalações para embarcações costeiras. Mas a criação de um sistema de transportes dependente de petróleo barato não foi um erro unicamente brasileiro, nem necessariamente irracional, dadas as expectativas de preço razoável do petróleo naquela época. Diretamente ou mediante impostos e incentivos de crédito, recursos maciços do Governo foram para projetos que beneficiavam principalmente os ricos e a classe média. Como resultado disso, talvez um quarto da população brasileira vive como os norte-americanos ou os europeus. É consenso geral que os incentivos para investimento em bens de capital eram tão grandes que as firmas escolhiam muitas vezes técnicas de produção automatizadas em vez daquelas intensivas em mão-de-obra.

2.2 Políticas excludentes

As realizações econômicas do Brasil tiveram custos políticos. Imediatamente após a tomada do poder pelos militares, em 1964, instituições como sindicatos rurais e partidos políticos, através das quais os trabalhadores podiam unir-se para apresentar exigências econômicas e políticas, foram sistematicamente desmanteladas e reprimidas, enquanto os sindicatos não-rurais eram submetidos de novo a um controle rígido com a utilização das leis trabalhistas corporativistas do Estado Novo de Getúlio Vargas. Numerosos líderes políticos, inclusive três ex-presidentes, foram privados dos seus direitos políticos. Muitos foram exilados. A repressão foi intensificada após a promulgação do Ato Institucional nº 5, em dezembro de 1968, coincidindo com o período do "milagre" econômico. As eleições perderam o significado para a maioria dos trabalhadores, mesmo quando eram permitidas. Durante o Governo Médici, tentativas de grupos de esquerda de organizar resistência armada ao regime foram severamente debeladas, sendo também reprimido o movimento trabalhista.

O estilo do crescimento econômico brasileiro (não apenas o quanto era produzido, mas o que era produzido e para quem) foi fortemente influenciado pelo fato de que os pobres e grande parte da classe operária não tinham nem voz ativa política nem poder econômico. Ao mesmo tempo, o rápido crescimento econômico era um dos três fatores a legitimar o regime entre os próprios militares, a classe média e uma fração significativa da classe operária. As outras fontes importantes da legitimidade eram o ataque dos militares à "corrupção" e à "subversão", sendo ambas vistas como deficiências reais da estrutura política do país derrubada em 1964, e a promessa de restaurar a democracia, que muitos acreditavam ameaçada pela subida da esquerda no Governo Goulart.

Os militares mantinham uma coesão interna substancial e governavam com a ajuda de tecnocratas civis. Recebiam forte apoio proveniente de interesses privados (inclusive de um setor de empresas estatais em rápida expansão) e de uma classe média em processo de aburguesamento, setores esses que ficaram com a parte do leão quanto aos frutos do crescimento econômico. Mesmo esses setores, todavia, não participavam, por nenhum meio institucionalizado, do processo de tomada de decisões. Os militares tomavam as decisões políticas-chave após consultas à sua escolha e levando em consideração somente aquelas que conseguiam, de algum modo, se fazer ouvir. Essas decisões eram então implantadas por burocratas militares e civis. Na esfera econômica, delegava-se considerável poder a ministros civis para traçarem políticas dentro de parâmetros amplos. O processo político nunca parou, mas os canais dentro dos quais ele se movia eram informais, mutáveis e inacessíveis à maioria dos brasileiros.

Se a política excludente era parte integrante do modelo econômico brasileiro ou se refletia um conjunto totalmente separado de objetivos e de formuladores de decisões, é uma questão discutível. Era essencial para o sucesso econômico? Foi a responsável por seus fracassos? Essas questões continuarão a deflagrar controvérsia entre os historiadores e cientistas sociais nos próximos anos, e poderão até nunca ser respondidas claramente. Mas um legado importante do sistema político instalado em 1964 foi a inatividade política de líderes de esquerda com alguma repercussão popular. Outro foi o bloqueio dos canais normais de participação política, não apenas dos trabalhadores, mas de muitos outros segmentos da sociedade brasileira, incluindo os estudantes e a classe média. Ao mesmo tempo, foi mantida uma superestrutura política formal: dois partidos sem nenhum poder real de influenciar as principais decisões políticas e econômicas, um Congresso (que chegou a ser fechado temporariamente quando exorbitou dos limites estritos ditados por seus mentores militares) e até eleições, embora os candidatos que ultrapassassem os parâmetros políticos tolerados fossem imediatamente privados de seus direitos políticos.

Conseqüentemente, aqueles políticos que escolheram ficar dentro do sistema perderam muito da sua legitimidade aos olhos dos votantes que rejeitavam esse sistema. Talvez o fato mais importante foi que, durante 15 anos, houve poucas oportunidades para que uma nova geração de políticos - quer do partido da oposição, quer do partido do governo - ganhasse experiência política e seguidores. Os exilados perderam contato com muito do que ocorria na sociedade brasileira. A censura da imprensa e dos meios de comunicação de massa também privou os brasileiros da informação necessária à formação de opiniões sobre problemas econômicos e sociais, além dos políticos.

2.3 Concentração e difusão lenta (trickle-down)

No começo da década de 70, muitos economistas brasileiros argumentavam que "o bolo tinha que crescer antes de poder ser distribuído", mas que um rápido crescimento econômico se alastraria até os pobres e ajudaria a resolver, quase automaticamente, os problemas sociais do Brasil. A evidência disponível sugere que o crescimento beneficiou os pobres, em algum grau. A maioria dos brasileiros compartilhou alguma coisa do crescimento econômico real. Mas os ganhos dos ricos foram enormemente maiores que os dos pobres, em termos absolutos. E, em termos relativos, os ricos ficaram mais ricos mais rapidamente do que os pobres ficaram menos pobres. Embora as estatísticas disponíveis deixem espaço considerável para debates sobre algumas questões da distribuição de renda (Pfeffermann & Webb, 1979), é indiscutível que a renda no Brasil foi distribuída de modo extremamente desuniforme em 1960 e que assim permanece ainda hoje.

Em 1978, a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (PNAD) mostrou que, nesse ano, 43% das famílias brasileiras tinham uma renda total (incluindo renda em espécie) menor que dois salários mínimos (equivalentes a menos que cerca de US$ 216 por mês aos preços de hoje ou acerca de US$42 mensais por membro familiar), limite usado muitas vezes como linha da pobreza. Embora os dados publicados para 1978 não permitam estimativas precisas, é provável ainda que os 10% de famílias mais ricas recebessem acima de 50% da renda, como mostrado por todas as pesquisas ou censos oficiais a partir de 1960, após feitos os ajustes necessários para tomar as estimativas tão comparáveis quanto possível, ao passo que os 40% das mais pobres recebiam bem abaixo de 10% (ver tabela 2).

A estrutura da produção que se desenvolveu reflete, e na verdade ajuda a formar, a distribuição da renda. Os ricos têm mais dinheiro do que os pobres, e o mercado responde somente a demanda efetiva. A estrutura industrial do Brasil está fortemente influenciada pela indústria automotiva, por seus fornecedores e pelas indústrias que produzem e mantêm a infra-estrutura necessária aos automóveis, desde estradas a postos de serviço e áreas de estacionamento. Mais de um milhão de veículos novos são agora produzidos anualmente. Por volta de 1976, 17% dos brasileiros viviam em famílias com ao menos um automóvel e 2% em famílias com dois ou mais automóveis (ver tabela 3). Analisando pesquisas sobre orçamento familiar é difícil ver como mesmo esses muitos brasileiros conseguem ter automóveis particulares - a rápida expansão do crédito ao consumidor indubitavelmente desempenhou um papel e pode ter ido longe demais. Como muitas outras, a indústria automotiva foi estabelecida com a ajuda de grandes incentivos governamentais, mesmo estando no setor privado. A escolha do investimento influenciou quem iria ganhar com isso. Indústrias de capital intensivo e alta tecnologia, como a petroquímica, a aeronáutica e a energia nuclear, absorveram grandes importâncias de capital e conduziram a rápidos aumentos da demanda de mâo-de-obra qualificada, que ajudou a elevar os salários de pessoal qualificado técnico e administrativo a níveis iguais ou superiores àqueles pagos em países muito mais ricos.

A tabela 3 mostra também outros bens de consumo duráveis que estão mais amplamente distribuídos e proporciona uma boa noção de quão longe foi o processo de difusão lenta. Em 1976, 77% dos brasileiros viviam em moradias com rádio, ainda que só 60% vivessem em moradias com eletricidade. Em todas as áreas rurais, 70% tinham rádio, embora apenas 19% tivessem eletricidade - e no Nordeste rural, a região mais pobre do Brasil, 59% tinham rádio, mas somente 6% tinham eletricidade. Esses dados são evidência da revolução do transistor e dão a entender que o rádio tem potencial para atingir a vasta maioria dos brasileiros em suas moradias. A televisão era menos comum, mas ainda disponível em casa para 45% dos brasileiros - 64% em áreas urbanas e 9% em rurais. Em um número crescente de cidades rurais, aparelhos públicos de televisão são instalados nas praças e quase todos os brasileiros, habitando em cidades de qualquer tamanho, têm acesso a um aparelho de televisão no bar da esquina. De todos os brasileiros, 40% vivem em moradias com geladeira.

No período de 1960 a 1978, o rápido crescimento econômico expandiu o número de empregos com remuneração acima de um salário mínimo, a nível de preços de 1970 (ou cerca de US$76 por mês aos preços de hoje), com quase o dobro da velocidade de crescimento da população em idade de trabalho, mas cerca de 30% mais lentamente que o crescimento do PIB. Em 1978, tais empregos eram ocupados por cerca da metade da força de trabalho empregada, comparada com um terço em 1960. Contudo, os empregos com remuneração acima de um salário mínimo ocupados por operários semiqualificados (com quatro ou menos anos de escolaridade) cresceram com cerca de um terço da velocidade de aumento daqueles ocupados por operários com cinco ou mais anos de educação formal, 40% da velocidade de aumento do PIB e apenas ligeiramente mais rápido que a população em idade de trabalho. Entre 1973 e 1976, o emprego total de adultos (de 20 anos para cima) fora do setor agrícola cresceu em 4,4% ao ano, enquanto o crescimento do PIB era de 8,1%, em média.

2.4 Necessidades sociais não-atendidas

Embora haja ainda muito a ser feito para atender às necessidades básicas de toda população brasileira, nas duas ultimas décadas houve progressos significativos, particularmente em áreas urbanas nas regiões Sul e Sudeste. Um sistema nacional de financiamento de água e esgoto urbanos foi estabelecido através do Banco Nacional de Habitação (BNH), juntamente com as companhias estaduais de água e esgoto. Um sistema de tratamento da saúde em áreas urbanas foi consolidado através do Sistema Nacional de Previdência Social que, embora tenha muitas deficiências, elevou o atendimento da população urbana, de crescimento rápido, de 43% em 1960 para 80% atualmente. Já foi iniciada sua extensão a áreas rurais, com maior ênfase na medicina preventiva, mediante colaboração entre o Ministério da Saúde, as secretarias estaduais de saúde e o Sistema Nacional de Previdência Social. Suplementação aumentar está agora sendo fornecida a alguns dos pobres urbanos e rurais mais necessitados, através do Plano Nacional de Nutrição. E o sistema básico de educação em áreas rurais está subindo lentamente de nível. Uma análise detalhada do progresso alcançado e da revisão dos programas governamentais envolvidos é disponível num estudo recente do Banco Mundial (Knight et alii, 1979).

Algumas noções do atual acesso da população brasileira aos serviços públicos básicos e o progresso obtido desde 1960 são fornecidos pela tabela 4, que dá indicadores sociais selecionados, para anos recentes, tirados de fontes oficiais. Novamente são apresentados dados em separado para a região mais pobre, o Nordeste, onde vivem quase 30% dos brasileiros. De modo geral, esses indicadores mostram que houve progresso substancial, mais rápido no Nordeste do que no Brasil como um todo e mais rápido para alguns indicadores do que para outros. Sendo, porém, a defasagem do Nordeste em relação à média nacional ainda bastante grande. Os dados em separado para áreas urbana e rural mostram quase sempre um diferencial pronunciado a favor das áreas urbanas, encontrando-se os piores níveis, para a maioria dos indicadores, no Nordeste rural.

Em 1978, 76% dos brasileiros maiores de 15 anos e 56% dos que viviam no Nordeste alegavam saber ler e escrever. A média para todo o Brasil tinha melhorado em 16 pontos percentuais desde 1960. No Nordeste rural, a alfabetização adulta era apenas de 41% em 1978; lá, somente 5% da população maior de 15 anos tinham cinco ou mais anos de educação, critério às vezes usado para indicar alfabetização funcional. Além disso, no Nordeste rural a matrícula bruta nas primeiras oito séries escolares (incluindo repetentes e alunos acima da idade escolar) em 1974 era de 45% do grupo etário 7-14 anos, enquanto a média de todo o Brasil era de 85%, sendo que no Nordeste rural 63% abandonavam a escola antes da 2.ª série. Os dados sobre o abandono, repetência e promoção no Nordeste rural nesse mesmo ano sugerem que, mesmo que todos os estudantes repetentes fossem automaticamente promovidos após o 2º ano na mesma série, amenos de 4% terminariam a 4.ª série.

Em todo o Brasil, 21% das crianças entre 0 e 17 anos tinham peso abaixo do normal (subnutrição de segundo ou terceiro grau, segundo a classificação geralmente usada de Gomes); no Nordeste, a proporção era de 30%. De todo o Brasil, 52% das moradias ou eram ligadas a redes de água ou tinham acesso relativamente fácil a ela, através de bicas no pátio ou de reservatórios coletivos. O número global correspondente para 1960 era 21%. Em 1978, 25% da população brasileira ainda viviam em moradias sem qualquer tipo de dispositivo de saneamento, nem mesmo latrina.

É difícil obter indicadores de saúde confiáveis, mas a expectativa de vida é um dos indicadores gerais mais sensíveis do estado da saúde. Para o Brasil como um todo, a expectativa de vida no nascimento aumentou de 52 anos em 1960 para 61 anos estimados em 1976. No Nordeste, o ganho foi algo maior, passando de 42 anos em 1960 para 53 anos em 1976. Estimativas precisas para 1980 devem aguardar o processamento completo do censo de 1980. Mas análises baseadas no censo de 1970 mostraram que o grupo de renda mais baixa das áreas urbanas dos Estados centrais do Nordeste tinha uma expectativa de vida de apenas 40 anos, ao passo que, para o grupo mais rico das áreas urbanas dos estados do extremo Sul, ela era de 67 anos, ou seja, 27 anos mais e comparável com aquela de muitos países desenvolvidos (Carvalho & Wood, 1977).

Como se compara a expectativa de vida no Brasil com aquela de outros países em desenvolvimento da América Latina e do resto do mundo? A figura 1 mostra a relação "normal" entre expectativa de vida e PNB per capita em 1978, obtida por análise de regressão usando-se dados publicados pelo Banco Mundial (Word Bank, 1980). Essa análise sugere que o nível de saúde da população brasileira está defasado em relação ao seu nível de renda.

Assim, a despeito de alguma difusão lenta de rendas e de progressos significativos na expansão de serviços públicos básicos, tais como educação primária, suprimento urbano de água e tratamento de saúde nas cidades maiores, persistem no Brasil sérios problemas sociais: analfabetismo, subnutrição e falta de acesso aos serviços públicos básicos ainda afetam grandes proporções da população, especialmente no Nordeste.

Qual o custo humano dessas necessidades sociais não-atendidas? Este ano nascerão no Brasil cerca de 3,8 bilhões de bebês. Antes de completarem um ano, aproximadamente 306 mil morrerão. Se o Brasil tivesse a mesma taxa de mortalidade infantil que Sri Lanka, um país onde o PIB per capita é um sétimo daquele do Brasil, 146 mil - quase a metade desses bebês - não morreriam. Se a taxa de mortalidade infantil do Brasil fosse aquela de Costa Rica, cujo PNB per capita é muito próximo daquele do Brasil, 199 mil das 306 mil viveriam. E se o Brasil tivesse a taxa de mortalidade infantil de Cuba, 210 mil vidas jovens seriam poupadas. Essa trágica perda de vidas não precisa continuar. Interrompê-la, porém, exigirá melhor tratamento de saúde, nutrição melhorada, mais educação para as mães, menor fertilidade, suprimento de água melhorado e melhor saneamento. E isto significa ação governamental.

3. CONTRADIÇÕES INTERNAS E RESTRIÇÕES EXTERNAS

O rápido crescimento econômico foi um dos principais fatores a legitimar o regime militar do Brasil. Mas o próprio sucesso do processo de crescimento em transformar muitos aspectos da sociedade e economia brasileiras solapou outras fontes de apoio político para o regime. E quando choques externos, particularmente a quadruplicação dos preços do petróleo em fins de 1973 e a nova duplicação em 1979-80, resultaram em crescimento mais lento acompanhado de inflação crescente, tomou-se claro que apoiar-se em desempenho econômico forte para legitimação do regime poderia ser politicamente arriscado. Isto levou a um processo de liberalização política, com o regime buscando ampliar sua base política e dividir uma oposição crescentemente eficaz.

3.1 As contradições do crescimento

Considerem-se primeiramente os efeitos do rápido crescimento econômico em si. Os sistemas melhorados de transportes e comunicação - incluindo auto-estradas, telefones, rádio e especialmente televisão - unificaram o mercado e o corpo político nacional. O volume e a qualidade das estatísticas econômicas e sociais brasileiras à disposição dos analistas aumentou tremendamente. Aqui o papel do IBGE tem sido dos mais importantes. Ocorreu uma explosão na pesquisa de ciências sociais, e o estado educacional da população melhorou sensivelmente. Esses desenvolvimentos tomam crescentemente visíveis as iniquidades da sociedade brasileira, com o aumento da compreensão popular quanto a sua natureza e causas. Dissensões internas em setores oficiais abrandaram a censura o suficiente para permitir, em 1973, um importante debate na imprensa, sobre distribuição de renda. Esse era o primeiro sintoma do que estava por vir.

Enquanto, na economia, ocorriam taxas de crescimento "milagrosas" e a inflação caía firmemente, o rápido crescimento facilitou a absorção de novas admissões na força de trabalho e também permitiu alguma redução no acúmulo de subemprego. Isto ajudou a legitimar o regime aos olhos de muitos brasileiros. Mas, depois que essa economia já superaquecida recebeu um golpe direto no tanque de gasolina com o choque do petróleo da Opep, o crescimento só poderia ser sustentado, embora em nível menor, por um rápido aumento de empréstimos no exterior. A inflação também se acelerou, pois o aumento de preço da energia foi transmitido através da economia e um novo surto de substituição das importações na indústria básica e nos bens de capital foi iniciado no Governo Geisel. Mas isto tem exigido investimentos crescentes para produzir uma unidade adicional de produção. O índice incremental capital/produto (Icor) cresceu de uma média de 3,0 em 1970-75 para 3,9 em 1975-79. Esses índices crescentes têm ocorrido em vários graus em diversos outros países de renda média, incluindo Argentina, Costa do Marfim, Coréia, Peru, Turquia e Iugoslávia. O fenômeno pode ser parcialmente atribuído a uma reestruturação do capital para se ajustar a preços mais altos de energia.

3.2 Choques externos

Ao final de 1980, a inflação atingiu 110% e a dívida externa elevou-se a US $54,4 bilhões, comparada a US$12,6 bilhões de fins de 1973. Enquanto na maioria desses anos o juro da dívida externa foi negativo em termos reais, em 1980 o serviço líquido da dívida (juro da dívida menos juro recebido das reservas de moeda estrangeira mais amortização) absorveu 61% das receitas de exportação. Uma vez que 2/3 da dívida são sujeitos a taxas variáveis de juros, as recentes flutuações agudas das taxas de juros adicionaram um novo elemento de incerteza no balanço de pagamentos. Dada a tendência dos países industrializados de se apoiarem substancialmente na política monetária para combater a inflação, taxas reais de juros positivas podem tornar-se a regra em vez da exceção nos próximos anos.

Este não é o lugar para fazer projeções detalhadas do balanço de pagamentos do Brasil. É suficiente enfatizar de novo que, mesmo com o crescimento das exportações muito rápido e constante e com uma redução na taxa de crescimento da economia brasileira de 5 ou 6% ao ano (provavelmente insuficiente para absorver as novas admissões à força de trabalho, que crescerão a 2,8% ao ano na década de 80, se o recente estilo de crescimento for mantido), a conta do serviço da dívida mais as importações de petróleo poderão tangenciar ou exceder a receita das exportações durante os próximos três anos, no mínimo. No entanto, mesmo esse cenário de crescimento mais lento' depende altamente de pelo menos quatro fatores, não totalmente sob o controle dos formuladores de política no Brasil.

1. O Brasil importa mais de 80% do seu petróleo e, mesmo que seja descoberto mais petróleo no Brasil e que continuem os progressos na substituição de petróleo por outras fontes de energia, o país permanecerá extremamente vulnerável a futuros aumentos reais de preços ou interrupções de abastecimento dos seus fornecedores externos, no mínimo durante o resto da década.

2. A desaceleração do crescimento econômico nos países da OCDE está estimulando um aumento de protecionismo, que ameaça as exportações de manufaturados, em rápida expansão no Brasil.

3. Mesmo sem aumento de protecionismo, o crescimento mais vagaroso na OCDE tende a reduzir os preços das exportações brasileiras, bem como sua demanda.

4. Considerações internas de carteira e restrições impostas por autoridades monetárias em diversos países exportadores de capital sugerem que, no futuro, poderá ser mais difícil os bancos internacionais privados aumentarem seu grau de exposure para o Brasil, mesmo que continuem a receber grandes depósitos de petrodólares.

Assim, eventos fora do controle do Brasil poderiam forçar uma desaceleração adicional no crescimento econômico, com conseqüentes acréscimos adicionais das tensões políticas, pelo fato de mais membros da força de trabalho verem frustradas suas expectativas de emprego e de renda.

3.3 Erosão do apoio político

Com o aniquilamento dos grupos de guerrilha urbana durante o Governo Médici, o argumento de que as instituições democráticas não podiam ser restauradas por causa da ameaça interna de "subversão" ficou muito enfraquecido. Mesmo aquela parte do público brasileiro que mais tinha sé beneficiado com a política econômica do regime começou a questionar a utilidade do poder militar permanente. De fato, muitos argumentavam que os próprios militares estavam subvertendo a democracia e as regras da lei, mediante a utilização do aparelho repressor, da censura e da camisa-de-força colocada nas instituições políticas.

Dois outros fatores ajudaram a acelerar o movimento no rumo da redemocratização. O primeiro foi o medo do poder crescente do setor estatal na economia brasileira. Todas as maiores empresas dos setores bancário, de indústria básica, petróleo, mineração, eletricidade, aeronáutica e equipamentos militares são agora empresas estatais. Os gigantes - como Petrobrás, Eletrobrás e Companhia Vale do Rio Doce - geraram subsidiárias ao ponto de estarem agora entre os maiores conglomerados mundiais. A "estatização", como é chamada no Brasil essa tendência, acelerou-se durante o regime militar, a despeito da sua proclamada posição a favor da empresa privada. A determinação do regime de promover rápido desenvolvimento dos recursos do Brasil, de controlar indústrias consideradas vitais para a segurança nacional e de competir com sucesso com as corporações transnacionais, foi, na prática, uma das forças mais poderosas. O setor privado doméstico começou, em 1975, um vigoroso ataque à estatização na imprensa e em outros foros públicos. A campanha de antiestatização inclui ataques à corrupção e ao mau desempenho de algumas empresas estatais. Embora sem se exporem, as corporações transnacionais têm compartilhado desse temor das tendências expansionistas do setor estatal.

O segundo fator foi o papel da Igreja Católica, tanto ao reagir contra as violações dos direitos como ao advogar, cada vez mais, maior justiça econômica e social. O Cardeal de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, emprestou seu prestígio ao movimento sindical em São Paulo, e em muitas partes do Brasil a Igreja está apoiando organizações locais, chamadas Comunidades Eclesiais de Base, que quase inevitavelmente adotam tons de oposição. Durante sua visita ao Brasil em julho de 1980, o Papa João Paulo II clamou por justiça social e tocou claramente num tema sensível da população. As maiores multidões da história do Brasil se reuniram para ver o Papa, transformando sua visita em importante acontecimento político, além de religioso.

3.4 Liberalização política

Todos esses fatores levaram, primeiro, o Governo Geisel e, depois, o Governo Figueiredo a empreender uma política de liberalização política. O início desse processo antecedeu a ênfase sobre direitos humanos da política externa americana do Presidente Cárter, porém não a campanha internacional contra a violação dos direitos humanos no Brasil. Mas a política americana provavelmente fortaleceu os segmentos da sociedade brasileira que lutavam pela redemocratização.

O processo ganhou novo ímpeto pelo fato de o partido de oposição tolerado, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), ter obtido retumbantes vitórias nas eleições para o Congresso em 1974 e em 1978. apesar da forte intervenção do Governo, controlando o acesso à televisão, cassando os direitos políticos de diversos candidatos do MDB, indicando diretamente um terço dos senadores nas eleições de 1978 e manipulando as alavancas normais do poder de um regime opressor. Com o aumento das dificuldades econômicas, cada eleição se tomou um plebiscito contra o Governo. Por não haver outro canal político disponível, os encontros científicos e profissionais resultavam em acontecimentos políticos. O Governo, contudo, retinha o controle do Congresso, ao vencer nas áreas rurais mais conservadoras e nos Estados menores, com representação no Congresso desproporcional à sua população.

Embora mantendo o controle do processo de redemocratização e até efetuando retiradas estratégicas ocasionais, os políticos militares do Brasil vêm sofrendo visivelmente fortes pressões da sociedade brasileira. E essas pressões, associadas a tensões dentro do próprio estado burocrático-autoritário, levaram os militares a tentar o seu gradual desligamento da conduta direta da política da Nação. Essa tarefa não tem sido fácil, ocasionando consideráveis dissensões entre os militares.1 1 Naturalmente, as dificuldades em institucionalizar um regime burocrático-autoritário estável e o problema da extricação conseqüente não são exclusivos do Brasil (ver Cardoso, 1979; O'Donnel, 1979; e Stepan, 1978).

A liberalização, porém, foi real e, para muitos, irreversível. Nos últimos sete anos, a tortura aos prisioneiros políticos aparentemente cessou, a liberdade de imprensa foi restaurada - até a televisão, mais fortemente censurada, teve permissão para entregar-se a programas de sátira política e discussões de problemas políticos -, ocorreram greves em grande escala e negociações coletivas, foi declarada uma anistia política, a maioria dos exilados retornou e os dois partidos oficialmente permitidos, a Arena e o MDB, foram dissolvidos. Uma diversidade de partidos políticos, incluindo o Partido Trabalhista com base na classe trabalhadora, está tendo permissão para se organizar. Ficou evidenciado, pelas explosões no Rio de Janeiro em maio de 1981, envolvendo elementos militares, e pelos problemas evidentes do Governo Figueiredo na investigação desses incidentes, que o processo não tem o apoio de alguns setores militares. Mas, logo após as explosões, os principais partidos da oposição se juntaram ao partido do Governo em apoio à posição do Presidente Figueiredo contra atividades terroristas e a favor da continuação do processo de redemocratização.

Os historiadores provavelmente registrarão 1974 como o ano em que o modelo político brasileiro pós-64 se tornou obsoleto. Ainda não está claro o que ocupará seu lugar, mas será diferente. Quanto ao modelo econômico, as reformas, até agora, apenas tocaram tangencialmente os mecanismos que concentram a renda é a riqueza, como o sistema de impostos e o uso extensivo de crédito subsidiado. A abertura política, no entanto, não poderá continuar por muito tempo e culminar numa democracia ao estilo ocidental sem algumas mudanças fundamentais do modelo econômico, concomitantemente com uma maior participação política da classe operária. Para serem viáveis, essas mudanças deverão incluir medidas significativas de redistribuição, para corrigir as extremas desigualdades sociais que caracterizam o Brasil de hoje. Isto não significa que tais medidas devam preceder o desligamento dos militares.

A íntima relação entre as mudanças do sistema político, a economia e o desenvolvimento social foi percebida pelo menos por alguns membros do atual Governo. Em recente entrevista a dois repórteres da revista Veja, o equivalente brasileiro de Newsweek e Time, o atual Ministro da Indústria e Comércio, João Camilo Penna, expressava o desafio a ser enfrentado pelos atuais governantes:2 2 Veja, n.º 607, 23 abr. 1980.

"Penna - As dificuldades do presente momento refletem, em boa medida, a política deliberada do crescimento econômico, mesmo a um alto custo financeiro, mas também em termos sociais e políticos. O Brasil tinha um claro desequilíbrio entre seu território, sua população e sua produção. Era um dos maiores países do planeta em área e população, mas medíocre em produto econômico. Foi decidido, com sucesso, fazer a produção corresponder à posição (do Brasil) em população e área.

Veja - Isso, porém, resultou numa grande concentração de desenvolvimento.

Penna - Exatamente. E daí a abertura política, porque sem ela o desenvolvimento econômico se concentra, tanto a nível de regiões como entre a população. É necessário deixar claro que os problemas que temos hoje, e que são o fruto do crescimento, são menores do que teríamos se a economia tivesse estagnado. Teria sido muito pior se tivéssemos adotado política de recessão; como fizeram muitos países menores que o Brasil.

Veja - O Sr. diz muitas vezes que, além das dívidas financeiras, externa e doméstica, há uma outra dívida social, que é fruto da concentração da riqueza. Pode explicar melhor isso?

Penna - O país possui hoje um extrato social com alta capacidade gerencial que tem, contudo, uma grande dívida com 40 milhões de brasileiros humildes. Uma dívida que, se não for paga, terá como resultado transformar essas pessoas humildes em humilhadas. E após as pessoas humilhadas, não sei não.

Veja - Como é que essa dívida pode ser paga?

Penna - Precisamente, para evitar que os humildes sejam transformados em humilhados é que o Governo Figueiredo, num sábio gesto, decidiu empreender a abertura política. O Governo está convencido que, sem desenvolvimento político, o desenvolvimento econômico não serve ao desenvolvimento social."

4. REDISTRIBUIÇÃO COM CRESCIMENTO: UM DESAFIO PARA A DÉCADA DE 80

Como pode o desenvolvimento econômico do Brasil na década de 80 servir às necessidades sociais? Duas coisas são necessárias:

1. Uma estratégia de desenvolvimento econômico viável dentro das pressões econômicas enfrentadas pelo Brasil.

2. A construção de uma base política para iniciar e sustentar essa estratégia.

A estratégia econômica pode ser rotulada de "redistribuição com crescimento", mas crescimento de natureza qualitativamente diferente daquele dos últimos 15 anos. A idéia é alterar, pelo menos marginalmente, o perfil do investimento e do consumo - mudar o que é produzido e para quem é produzido. Muitos elementos da estratégia proposta podem ser encontrados no terceiro Plano de Desenvolvimento Nacional do Brasil, para o período de 1980-85, elaborado pelo atual Governo (República Federativa do Brasil, 1980), que preconiza melhoria da distribuição de renda e aceleração do crescimento da renda e de emprego, mantendo o combate à inflação e a obtenção do equilíbrio no balanço de pagamentos. Este plano, todavia, não tem nem metas quantitativas nem cronograma para sua realização.

A estratégia será mais eficaz - atingirá mais rapidamente suas metas de redistribuição - se ocorrer uma redistribuição tanto absoluta como relativa, ou seja, se não apenas a produção adicional tiver uma natureza diferente e for dirigida a indivíduos diferentes, como também parte da estrutura existente de produção for reorientada para servir a novos fins. Isto requer "tirar dos ricos e dar aos pobres" - mediante reforma de impostos e reforma agrária, por exemplo. Tais reformas poderiam ser impostas pelos militares em nome da segurança nacional. Num cenário mais democrático, elas exigiriam, com um alcance maior que a simples redistribuição marginal, uma ou ambas as seguintes condições:

1. Os ricos aceitariam que interesses a longo prazo fossem beneficiados por alguma redução no valor real de suas riquezas e/ou rendas atuais, de modo a diminuir as desigualdades sociais insustentáveis a longo prazo.

2. O poder político dos beneficiários desse processo cresceria até o ponto em que esta redistribuição pudesse ocorrer, contra os desejos de algumas elites que têm, hoje, influência política.

A essência da estratégia é investir nos serviços públicos básicos (através do setor estatal) e em bens de salário básicos (através do setor privado). Os primeiros seriam financiados por uma combinação de impostos e encargos sobre os usuários. A produção dos últimos seria estimulada por reformas de impostos e créditos destinados a aumentar a oferta de empregos e a reduzir o preço de mercado de tais bens, ampliando, assim, sua demanda efetiva. Uma reforma agrária, não mencionada nos planos do Governo, também poderia aumentar a oferta de empregos, a produção de gêneros alimentícios e a demanda efetiva de bens de salário entre a população rural pobre. A fim de satisfazer a demanda doméstica, o crescimento da economia brasileira na década de 80 seria nas seguintes áreas: educação e serviços básicos de saúde, abastecimento de água, esgotos, habitações populares, alimentos, vestuário, bicicletas e ônibus, em vez de habitações de luxo, automóveis particulares, aparelhos de televisão a cores, cirurgia estética e outros. £ não haveria redução no bem-sucedido impulso brasileiro de expandir as exportações, o que, conforme mostrado por pesquisa, se deveu muito mais a produtos com mão-de-obra intensiva do que por substituição das importações (Zaghan & Rego, 1979).

O que é bom para o desenvolvimento social é viável economicamente? Não é somente viável - pode até ser necessário para evitar um impasse econômica Durante os próximos cinco ou dez anos, o crescimento será quase certamente mais lento do que nos últimos 15 anos, independentemente da estratégia de desenvolvimento escolhida. Deve-se isto à expectativa de um ambiente internacional menos favorável, ao custo maior da energia (e, provavelmente, de outros recursos não-renováveis) e à necessidade de fazer regredir a taxa de inflação. Mas o estabelecimento de preços de capital e mão-de-obra mais de acordo com sua escassez relativa, as mudanças tecnológicas, a melhoria qualitativa dos recursos humanos e o uso melhor dos recursos naturais poderiam provavelmente, todos eles, colaborar para um índice sustentável de crescimento para qualquer nível de investimento. A necessidade de formação de capital poderia ser reduzida por uma reestruturação setorial de produção e por maior ênfase, internamente, nos fatores abundantes. Conseqüentemente, poderiam diminuir tanto o índice capital-produto quanto o índice capital-mão-de-obra.

O Brasil, com um PNB per capita já superior a US$2.000, tem os recursos financeiros para atender às necessidades básicas de todos os seus cidadãos dentro de 10 anos, sem sacrifícios realmente drásticos dos 30% mais abastados. Mas, a despeito de alguns progressos significativos em anos recentes, falta hoje ao Brasil a capacidade administrativa para implantar um plano tão ambicioso. A erradicação da pobreza absoluta implicaria em importantes mudanças de valores, tanto entre os pobres como entre os ricos. Por exemplo, no Brasil, como ocorreu em vários outros países, tentativas recentes de expandir os serviços de saúde rurais esbarraram em sérios problemas administrativos e na resistência às recomendações com relação a práticas de saneamento e higiene (Knight et alii, 1979; World Bank, 1980). Muitos brasileiros pobres aparentemente preferem adquirir modernos bens duráveis de consumo, como aparelhos de televisão, a atender às exigências nutricionais (Knight et alii, 1979). Assim, mesmo com forte apoio político, a criação da infra-estrutura administrativa necessária, a mudança de algumas tradições culturais profundamente arraigadas que forem diretamente contra descobertas científicas modernas e a alteração de valores de consumo inculcados pelos meios de comunicação de massa precisarão de um esforço a longo prazo - no mínimo até o fim do século. Mas, no final da década de 80, já teriam sido conseguidos progressos substanciais rumo à meta da erradicação da pobreza.

A redistribuição do investimento é uma parte crucial da estratégia. Ações diretas da política pública podem mudar as decisões de investimento que afetam os serviços públicos básicos. Melhor saúde, educação e nutrição podem ter um grande impacto na produtividade dos pobres, aumentando potencialmente suas rendas (World Bank, 1980). Parte dos ganhos de produtividade será recaptada na forma de impostos e encargos aos usuários (como tarifas de água e esgotos e pequenos honorários para visitas a postos de saúde e hospitais, o que também ajudaria a desencorajar o uso indiscriminado). É provável que o Estado precise ajudar a induzir mudanças nas decisões de investimento do setor privado. Uma clara enunciação da estratégia pelo Governo, incentivos fiscais adequados, uma demanda crescente com a expansão da oferta de empregos para os pobres e o apoio gerado pelo processo de redemocratização ajudariam a convencer os investidores privados que os investimentos nos-bens de consumo básicos e/ou uma reorientação, nesse sentido, de suas instalações produtivas existentes seriam lucrativos.

A reorientação dos investimentos, tanto públicos como privados, pode também aumentar a produtividade da mão-de-obra empregada no setor de bens de salários, aumentando, com isso, a disponibilidade de bens e serviços e lançando a base para sua transformação em maiores salários, ordenados e lucros, que podem então ser reinvestidos (Moura da Sirva, 1979). Os serviços públicos básicos e os bens de consumo provavelmente são mais intensivos em mão-de-obra e menos intensivos em energia para se investir neles, produzi-los e usá-los - que o conjunto de bens e serviços a que foi dirigido o crescimento nos últimos 15 anos.

Mas talvez a pressão econômica fundamental seja aquela proporcionada pelo balanço de pagamentos. A estratégia anteriormente proposta poderia resultar em perfis de consumo a investimento menos intensivos em importações do que os atuais - particularmente as importações de petróleo, trigo e tecnologia - sem sacrificar a eficiência econômica, como parece ter acontecido com a acentuada compressão das importações, como percentagem do PNB, desde 1974. Ela provavelmente também exigiria menores remessas de lucros e menores pagamentos pelo serviço da dívida. Nos itens seguintes me deterei em alguns desses pontos e indicarei áreas que precisam de pesquisa.

4.1 Ampliação dos serviços públicos básicos e expansão da produção de bens de salário básicos

Os programas governamentais existentes referentes a saúde, nutrição, educação, habitação, abastecimento de água e esgoto, bem como os tipos de reformas necessárias à melhoria de sua eficiência e à ampliação da cobertura básica a toda a população brasileira necessitada desses serviços, estão analisados em profundidade no Brasil Relatório Especial sobre: Recursos Humanos, publicado pelo Banco Mundial (Knight et alii, 1979).

Ás estimativas ali apresentadas sugerem que a cobertura virtualmente total da população necessitada poderia ser alcançada entre 1990 e 2000, com gastos anuais do Governo, de hoje até lá, da ordem de 5 a 6% do PIB e com impostos adicionais máximos (além dos impostos ou outros encargos já vigentes) de aproximadamente 2% do PIB. Assim, a consecução desse objetivo não é, em princípio, um grande problema econômico ou financeiro. As pressões paralisadoras são, mais provavelmente, estrangulamentos organizacionais de pessoal e logística, que poderiam retardar o ritmo da ampliação dos serviços, especialmente nas áreas rurais. São obstáculos sérios. Ainda há muito que aprender sobre como tratá-los eficazmente. Porém, se se der prioridade ao atendimento das necessidades básicas, os obstáculos podem ser superados.

Padrões mais elevados de serviço (particularmente em saúde e habitação popular) e implantação mais rápida exigiriam mais recursos financeiros. Mas, mesmo que fosse necessário o dobro de impostos adicionais - 4% do PIB - benefícios econômicos significativos poderiam ser obtidos tanto a curto como a longo prazo. Operários mais bem educados, mais saudáveis e mais bem alimentados produzem mais. Eles também tendem a ter menos filhos. O aumento de produtividade se refletirá numa combinação de maiores rendas dos operários, lucros dos negócios e receitas dos impostos. Assim, grande parte dos gastos do Governo em serviços públicos básicos pode ser legitimamente considerada como um investimento em pessoas e não em consumo - um investimento que requer relativamente pouca moeda estrangeira, que gera um número relativamente grande de empregos para brasileiros que aumenta a flexibilidade da força de trabalho na adaptação a novos desafios e oportunidades futuras.

O setor privado pode provavelmente produzir bens de salário básicos mais eficientemente, exceto quanto a algumas formas de transportes urbanos de massa, tais como ônibus e sistemas sobre trilhos. As famílias que os usarão poderão produzir habitação, alimentos e vestuário, se obtiverem os insumos necessários. O Governo precisa prover os incentivos adequados - taxação indireta baixa ou nula sobre esses bens e, possivelmente, subsídios para os encargos previdenciários sociais para a mão-de-obra utilizada na sua produção. Deve haver crédito disponível, mas não subsidiado. Em geral, o crédito subsidiado (isto é, empréstimos e taxas de juros bem abaixo do índice de inflação) aos produtores age contra o objetivo de gerar maior oferta de empregos para qualquer valor dos investimentos. Subsídios - ou melhor, a eliminação de impostos - para utilização de mão-de-obta têm efeito oposto, sujeitos, naturalmente, às limitações da faixa de tecnologias disponíveis. O maior incentivo ao investimento na produção de bens básicos é a presença de sua demanda efetiva, que ressalta a importância da expansão de empregos produtivos.

Há um bem de salário importante, que tem recebido subsídios diretos no seu preço: nos últimos anos, o trigo tem sido vendido aos moinhos bem abaixo do preço internacional, pagando-se usualmente aos produtores acima do preço internacional. Os subsídios nos preços dos produtores e consumidores de trigo custaram o equivalente a mais de US$1 bilhão, em 1980. Desse modo, tem-se estimulado o consumo, bem como a produção doméstica de custo elevado e a importação. As importações de trigo custaram ao Brasil quase US$900 milhões em 1980, podendo, em princípio, ser substituídas por outros grãos que o Brasil produz, a custos bem mais baixos em termos de recursos domésticos. Se necessário, o consumo desses substitutos poderia ser subsidiado. O Governo anunciou sua intenção de abolir gradualmente os subsídios ao consumo de trigo, mas não se iniciou nenhuma campanha para mudar os padrões de consumo, rumo a outros gêneros alimentícios, por outros métodos que não a simples mudança de preços. Obviamente, tal campanha poderia ser parte de uma estratégia para reduzir importações não-essenciais.

As tecnologias necessárias à produção da maioria dos bens de salário básicos são bem conhecidas e podem ser compradas no mercado internacional, caso ainda não disponíveis de fontes-brasileiras. O atual mercado brasileiro de tais bens está abastecido amplamente por produtores brasileiros. Se existe uma área em que o setor privado doméstico devia ter uma vantagem relativa sobre as empresas transnacionais ou as estatais, é esta. Alimentos, calçados, vestuário, bicicletas, móveis e materiais de construção para o mercado doméstico não requerem nem produção em escala extremamente grande, nem redes internacionais de marketing, nem tecnologias secretas. São indústrias em que geralmente prevalece a concorrência, não o monopólio ou oligopólio. E os bens de consumo básicos podem também ser, e são, exportados.

O setor privado doméstico pode também produzir muitos dos insumos necessários aos programas do setor público em educação, saúde, nutrição, habitação, abastecimento de água, esgotos e transportes de massa. Na verdade, se o setor público se limitasse aos insumos básicos (aço, petróleo, minerais, fertilizantes etc.) e concordasse em não se aventurar em insumos e bens de consumo intermediários mais elaborados, haveria uma base para uma "trégua" de significado político - o Estado poderia expandir-se na área dos serviços públicos e insumos industriais básicos, deixando para o setor privado a produção de bens de consumo acabados, bens de capital e a maioria dos insumos intermediários. Com diretrizes claras, poderia estimular-se, onde adequado, o investimento privado, inclusive o investimento estrangeiro. E a perna mais fraca do tripé composto por empresas nacionais privadas, multinacionais e estatais sairia fortalecida. Isto ajudaria na obtenção de apoio político de uma parcela substancial da comunidade empresarial brasileira para a estratégia da redistribuição com crescimento. E é enorme o mercado doméstico potencial do Brasil, unificado pelos significativos investimentos públicos dos últimos 15 anos nas áreas de transportes e comunicações. As tabelas 3 e 4 indicam suas dimensões.

4.2 Garantia de um fornecimento de energia suficiente

A era da energia barata acabou. Embora haja claramente alguns modos menos onerosos que outros de atender às crescentes demandas de energia do Brasil - tanto no sentido econômico como no social -, não há soluções miraculosas à vista. A energia comercial em todas as suas formas, em especial os combustíveis líquidos, tem hoje custos reais maiores, e este é um dos fatos a que se deve ajustar a economia brasileira. Dada a possibilidade de interrupção dos suprimentos de petróleo importado, bem como a alta probabilidade de novas elevações do preço real, os planejadores têm argumentos persuasivos a favor de investimentos em substitutos domésticos para o petróleo importado, mesmo com custos bem acima dos atuais preços das importações.

Obviamente, devem-se procurar formas mais baratas para substituição do petróleo importado, de preferência a outras mais caras. A conservação é provavelmente o modo mais barato de reduzir, não somente a conta das importações de petróleo, como também o montante de recursos que é necessário investir na produção de energia doméstica, mesmo quando não substituindo diretamente os combustíveis líquidos - por exemplo, investimentos em hidrelétricas e geração de energia nuclear. Seria vantajoso um .estilo de desenvolvimento menos dependente dos automóveis particulares, não apenas por reduzir as grandes exigências de energia na produção de automóveis, de todos os materiais neles incorporados e dos combustíveis por eles consumidos, como também por diminuir a necessidade da infra-estrutura cara exigida por um sistema de transportes centrado nos automóveis particulares. Por exemplo, o concreto para viadutos, auto-estradas e estacionamentos exigem grandes quantidades de cimento, cuja indústria é uma das maiores usuárias de óleo combustível. Se este for substituído por carvão das minas domésticas, como está planejado, os custos reais da mineração e transporte deste carvão serão maiores do que foram no passado para o óleo combustível.

Mas, mesmo admitindo-se, na conservação de energia, esforços muito mais árduos do que os despendidos até agora e um estilo de desenvolvimento de energia menos intensiva, as exigências globais de energia da economia brasileira provavelmente continuarão a se elevar até o fim do século. Isto porque o atendimento de necessidades básicas não-atendidas exigirá insumos de energia, embora provavelmente menores que aqueles necessários ao atendimento de necessidades menos básicas. O problema será então obter, cada vez mais de fontes domésticas, a energia necessária para suprir de combustíveis a nova estratégia de desenvolvimento aos menores custos econômicos possíveis, admitindo preços para a mão-de-obra, capital e câmbio exterior que reflitam seu verdadeiro valor de escassez para a economia brasileira. No processo dé planejamento deve-se ainda levar em conta a eqüidade e considerações ambientais.

São inevitáveis escolhas difíceis. Um exemplo marcante é um conflito potencial entre a produção de bens de salários básicos e a energia doméstica, inerente ao programa de álcool combustível desencadeado em 1975. Em 1977, o coeficiente nacional médio estimado álcool/ gasolina era 4,3%, em 1980 ele havia aumentado para 19%, e crescerá mais, à medida que mais carros forem movidos a álcool puro. O álcool, no Brasil, ainda é obtido quase que exclusivamente da cana-de-açúcar, que requer terras de alta qualidade. Embora desde 1976 os incentivos fiscais e créditos subsidiados tenham tomado financeiramente rentável a produção de álcool combustível, a produção de álcool diretamente da cana-de-açúcar não é, no Brasil de agora, economicamente competitiva com a gasolina, especialmente face aos altos preços do açúcar que têm prevalecido recentemente nos mercados internacionais (Homem de Melo & Pelin, 1980). Mas, à medida que o preço real do petróleo subir, admitindo-se ainda que)os preços do açúcar voltam a níveis mais normais, a questão imediata da viabilidade econômica do álcool combustível será menos discutida. Isto deixa em evidência uma questão mais ampla da estratégia de desenvolvimento: a produção agrícola total poderá ser aumentada com rapidez suficiente para atender aos requisitos da alimentação e proporcionar biomassa suficiente para combustível, sem elevar sensivelmente os preços dos alimentos, particularmente para pessoas já subnutridas ou que mal atingem seus requisitos de alimentação? Posto de outra maneira: devem-se desviar algumas das melhores terras cultivadas do Brasil da alimentação de pessoas para o enchimento de tanques de gasolina?

Embora o Brasil tenha potencial para alimentar bem seu povo, esteja expandindo rapidamente suas exportações agrícolas e lhe sobrem terras suficientes para produzir uma parcela substancial das suas exigências de combustíveis líquidos a partir de biomassa, o fato é que, entre 1966 e 1971, a produção das safras domésticas de alimentos mal tem acompanhado o crescimento da população. Por outro lado, as safras de exportação e industrial, dominadas pela soja, aumentaram mais de sete vezes mais rapidamente que a população. As estimativas indicam que, a persistirem as atuais tendências na produtividade agrícola, o Brasil precisaria aproximadamente dobrar, entre 1978 e 1985, a taxa anual de crescimento das áreas cultivadas observado no período 1968-77, se quiser produzir o suficiente para o consumo doméstico, as exportações e a produção de energia (Homem de Melo, 1980). Isto exigiria novos investimentos substanciais na infra-estrutura econômica e social.

Assim, poderia ocorrer uma concorrência tripla para as terras boas agrícolas. Dada a relativa força dos interesses das indústrias automobilística e açucareira, que defendem vigorosamente o programa do álcool, a necessidade urgente de expandir as exportações agrícolas para compensar as importações de petróleo e os serviços da dívida externa (em parte, para pagar as importações passadas de petróleo) e a falta de influência política dos malnutridos, existe o nítido perigo de os alimentos para consumo doméstico perderem a parada, com conseqüências sociais perniciosas e resultados políticos potencialmente explosivos. A expansão da produção de álcool de cana-de-açúcar provavelmente também reforçará a concentração das propriedades rurais no Brasil, particularmente pelo fato de o programa do álcool estar sendo levado à frente com a utilização de crédito altamente subsidiado e porque as destilarias procurarão controlar a produção da safra em suas vizinhanças (Saint, 1980).

Há três modos de reduzir o potencial do conflito alimentos-combustíveis: aumentando os rendimentos das safras de alimentos e de combustíveis; desenvolvendo safras de combustíveis, inclusive madeira, que possam ser cultivados economicamente em terras com pequeno ou nenhum potencial de produção de alimentos; e convertendo em álcool os resíduos agrícolas. Essas abordagens requerem um esforço importante de pesquisa para desenvolvimento de tecnologia - uma tarefa em que o Brasil já embarcou, mas que poderia ser acelerada. Contudo, nos próximos cinco anos, o plano governamental de obter mais do dobro da produção de álcool de 1980, atingindo 10,7 bilhões de litros (2,8 bilhões de galões) será provavelmente alcançado quase inteiramente com a expansão da produção de cana-de-açúcar - e é real a possibilidade de deslocar-se a produção das safras de aumentos das melhores terras, particularmente no fim do período e sobretudo no Nordeste. Após 1985, a situação ficaria mais difícil, a não ser que se substituam outras fontes de biomassa.

Por outro lado, a produção de energia a partir de biomassa é relativamente intensiva em mão-de-obra, se comparada com a produção de energia elétrica ou de petróleo, e poderia oferecer novas fontes de rendimentos e empregos agrícolas, desde que cuidadosamente planejada e apoiada em avanços tecnológicos. O potencial de exploração de energia de biomassa não está limitado ao álcool, seja de safras convencionais, seja de madeira, mas inclui também a produção de madeira combustível e óleos vegetais, sendo estes últimos uma das alternativas em estudo para substituir o óleo diesel.

Embora ainda haja problemas tecnológicos, agronômicos e organizacionais na produção do álcool a partir da mandioca, ela é altamente promissora coroo forma de produção mais descentralizada e intensiva em mão-de-obra, com melhor distribuição anual de requisitos de mão-de-obra e, conseqüentemente, menor demanda de mão-de-obra temporária do que a cana-de-açúcar. A mandioca pode ser produzida em terras muito mais pobres e é normalmente cultivada em grande escala por minifundiários, mas tem a desvantagem importante de não produzir bagaço para as destilarias de combustíveis (Saint, 1980). O álcool a partir da madeira é também altamente promissor em terras inadequadas para produção de safras alimentares.

As energias hidrelétrica e nuclear também são substitutos do petróleo na geração de eletricidade e em inúmeros outros casos, inclusive no transporte urbano de massa, nas ferrovias e na cozinha domiciliar. O programa nuclear do Brasil é, sem sombra de dúvida, a fonte mais cara de energia em desenvolvimento, e levanta questões ambientais e estritamente econômicas. Devido aos aumentos dos preços de petróleo e aos custos vertiginosamente crescentes do combustível urânio e da construção de usinas nucleares, é cada vez maior o número de locais hídricos anteriormente não-econômicos que se tomam econômicos. Para tanto colaboram as melhorias na tecnologia da transmissão, reduzindo os custos da utilização de locais mais distantes dos pontos de consumo. Tudo isso sugere que o Brasil provavelmente manterá, no restante do século, uma vantagem comparativa da geração hidrelétrica sobre outras formas de geração de eletricidade.

Atualmente, a utilização direta da energia solar parece economicamente atraente apenas para aquecer água. O maior obstáculo tem sido o alto subsídio ao óleo combustível, que agora está sendo removido. No Brasil, como em outros países com insolação relativamente alta, pode-se esperar um aumento do potencial de utilização direta da energia solar, na medida em que ocorrerem os necessários desenvolvimentos tecnológicos. Até hoje, aplicaram-se relativamente pouco dinheiro ou equipes científicas à pesquisa da energia solar no Brasil. O contraste com o programa nuclear é gritante. Provavelmente, justifica-se muito mais a pesquisa solar, particularmente como parte de uma estratégia para aumentar a igualdade, pois, ao que parece, a natureza descentralizada dós fluxos solares sustenta um padrão de desenvolvimento mais descentralizado e eqüitativo.

4.3 Reforma financeira

Há muitos meios de melhorar o funcionamento do sistema financeiro brasileiro. Mas, no contexto da estratégia econômica aqui delineada, a alteração mais importante seria restaurar o papel das taxas de juros como incentivos à mobilização da poupança doméstica e à eficiente alocação de capital.

Com a aceleração da inflação após 1973, o intervalo de taxas nominais de juros dos tomadores se ampliou enormemente, atingindo um pico em 1981, quando variavam de 5% a bem acima de 200%, dependendo da instituição que fazia o empréstimo, do setor da economia em que o recebedor trabalhava, do tipo de atividade envolvida e até de quem possuía a propriedade das firmas que recebiam o empréstimo. Ao mesmo tempo, uma percentagem crescente do fluxo total de crédito era disponível a taxas de juros abaixo da taxa de inflação, a maior parte originária das autoridades monetárias (o Banco Central e o Banco do Brasil), ainda que o emprestador final fosse uma instituição financeira privada.

Os subsídios ao crédito realmente assumiram proporções macroeconômicas - aproximadamente o equivalente a 5% do PIB em 1977 e 1978, e talvez até 10% em 1979 (World Bank, 1981). Esses subsídios são essencialmente transferências unidirecionais, muitas vezes de brasileiros mais pobres para mais ricos. A combinação de crédito seletivo acoplado à manutenção desses enormes subsídios do crédito tende a agir contra o tipo de estratégia de desenvolvimento aqui delineada e torna extremamente difícil qualquer cálculo econômico racional.

Para minimizar esses aspectos do sistema financeiro brasileiro, uma reforma financeira poderia:

1. Eliminar um dos maiores mecanismos propagadores de inflação, restringindo o poder das autoridades monetárias de expandir a oferta monetária de um modo inflacionário, tentando manter ou aumentar, ano após ano, o nível real do crédito.

2. Aumentar a eficiência econômica das decisões de investimento, reduzindo incentivos para aplicação improdutiva e especulações, e elevando, ao mesmo tempo, o custo do capital até seu custo real de oportunidade para a economia.

3. Aumentar a oferta de empregos gerada por unidade de capital investido.

4. Reduzir os enormes custos administrativos em que incorre o atual sistema de crédito subsidiado seletivo.

5. Encorajar a poupança doméstica através do sistema financeiro.

6. Diminuir o preço das terras agrícolas até o nível justificado por seu potencial agrícola pelo prêmio associado á acesso a crédito subsidiado. .

7. Eliminar um dos maiores mecanismos de concentração de renda e de riqueza, já que o crédito subsidiado está normalmente disponível em quantidades proporcionais à riqueza que pode ser usada como colateral.

Tal reforma deveria provavelmente ser gradual, mas não excessivamente prolongada. Ela poderia ser executada, digamos, num período de dois anos. Em novembro de 1980 o Governo brasileiro anunciou uma série de medidas tendendo à direção aqui delineada, mas definitivamente sem eliminar nem o crédito seletivo nem os subsídios. O terceiro Plano de Desenvolvimento Nacional indica que o Governo planeja reduzir gradualmente os subsídios ao crédito e que observa seu impacto regressivo sobre a distribuição de renda.

4.4 Reforma tributária

A reforma tributária oferece muitas oportunidades de aumentar a eficiência econômica e de mudar a estrutura dos investimentos e consumo, bem como de aumentar as receitas governamentais necessárias à ampliação dos serviços públicos. O sistema tributário brasileiro é repleto de incentivos fiscais que custaram ao Tesouro, em 1978, segundo estimativas, 1,8% do PIB (Conjuntura Econômica, 1979). Esses incentivos tendem a distorcer o preço dos fatores contra a mão-de-obra e a favor do capital, reduzindo assim o potencial de empregos gerados pelos investimentos. Eles também favorecem a concentração contínua de renda, uma vez que os indivíduos e as firmas podem investir parte das suas obrigações do imposto de renda, aumentando ainda mais o valor do seu ativo. Não há imposto sobre ganhos de capital (embora tenha sido anunciada, em abril de 1980, uma medida que equivale de fato a um imposto limitado sobre ganhos de capital), nem imposto sobre riqueza, e apenas um imposto muito limitado sobre heranças. Os incentivos fiscais levaram, em 1978, 0,7% do PIB, que, de outro modo, teriam ido para os impostos de renda pessoais. Esses incentivos fiscais reduzem enormemente a progressividade do imposto de renda pessoal, como o fazem as várias deduções permitidas. Nos últimos anos, a reforma dos impostos existentes e a introdução de impostos sobre ganho de capital e sobre riqueza tem aparecido, com certo destaque, em propostas feitas por agências tanto governamentais como não-governamentais (ver, por exemplo, Ipea/Inpes, 1978; e Bacha & Unger, 1978).

O primeiro objetivo de uma reforma tributária poderia ser levantar o nível das receitas dos impostos gerais governamentais, de aproximadamente 26% do PIB em 1978 para 30% em 1985.3 3 O Governo geral inclui o Governo federal (Tesouro, Fundo de Previdência Social e fundos federais autônomos), Governo estadual e governos municipais. O aumento de receitas dos impostos poderia financiar a ampliação dos serviços públicos básicos e, possivelmente, substituir algumas reduções nos impostos indiretos. Isto poderia ser realizado aumentando-se a efetiva progressividade do imposto de renda individual, taxando-se os ganhos de capital e elevando-se os impostos sobre heranças.

O segundo objetivo da reforma tributária poderia ser fornecer incentivos à produção de bens de salários básicos, removendo ou reduzindo consideravelmente os impostos indiretos que sobre eles incidem, com o que se reduziriam os preços para o consumidor e se estimularia a demanda, já que esses bens são produzidos normalmente sob condições de concorrência e não de oligopólio. Ao mesmo tempo, poderiam ser aumentados os impostos indiretos sobre os bens de consumo de luxo.

Um terceiro objetivo poderia ser o encorajamento do uso de mão-de-obra, mudando-se os impostos e os quase-impostos sobre a mão-de-obra que financiam, respectivamente, o Sistema de Previdência Social e o FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) - uma forma de poupança forçada que financia o BNH - de modo a que recaiam, em vez disso, sobre o valor adicionado. Assim, não se precisaria diminuir o rendimento desses impostos e quase-impostos, mas se eliminaria um desincentivo ao uso de mão-de-obra, complementando-se, desse modo, o efeito da elevação das taxas reais de juros sobre a escolha da tecnologia de modo a estimular empregos. A renda adicional de mão-de-obra assim gerada ajudaria a expandir a demanda dos bens de salário. A eliminação dos incentivos fiscais dos impostos de renda, tanto de pessoas físicas como jurídicas, os quais permitem aos que têm renda elevada fazer uma variedade de investimentos diretos e financeiros às custas do Tesouro, também trabalharia no mesmo sentido.

Este grande âmbito de reformas tributárias poderia ser implantado gradualmente no período de cinco anos que termina em 1985. Poder-se-ia argumentar que, uma vez que a carga.tributária brasileira já é relativamente alta, elevá-la em 4% do PIB afetaria o crescimento por diminuir o investimento privado. Esses novos impostos recairiam basicamente sobre os 10% das famílias brasileiras que recebem mais de 50% das rendas pessoais. Se a) a taxa de poupança marginal dessa classe de renda fosse 100%, b) todas as poupanças fossem para investimentos produtivos, c)os serviços públicos financiados fossem consumo puro, a taxa de poupança doméstica iria cair em 4%. Com um coeficiente incremental capital-produto igual a 4, se reduziria o crescimento em um ponto percentual. Mas poucos argumentariam que a taxa de poupança marginal dos ricos é de 100% e, como aponta claramente o Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 1980 do Banco Mundial, as despesas para melhoria da saúde (inclusive serviços de saúde, abastecimento de água, esgotos e programas de nutrição) e educação têm um importante componente de investimento e também ajudam a reduzir a fertilidade. Se parecer muito drástico um aumento da carga tributária equivalente a 4% do PIB implantado em cinco anos, convém lembrar que só o valor dos subsídios ao crédito foi de 5% do PIB em 1977 e 1978, podendo ter dobrado, em termos reais, em 1979, e que provavelmente era menor que 1% do PIB em 1973.

4.5 Reforma agrária

Há fortes evidências, provenientes de vários países, que indicam serem as fazendas pequenas mais produtivas do que as grandes (Berry, 1973; Griffin, 1974; Bhalla, 1979; Berry & Cline, 1979). A relação inversa entre produtividade da terra e tamanho da fazenda também tem sido observada no Brasil (Cline, 1970; Berry & Cline, 1979). Somente no Nordeste, o censo agrícola de 1975 revelou existirem 15,3 milhões de hectares de terras produtivas, mas não utilizadas (FIBGE, 1979a). O Banco Mundial e a Sudene examinaram 8.000 fazendas em 1973-74 e descobriram que, dependendo da zona ecológica, pequenas fazendas, baseadas principalmente em mão-de-obra contratada, empregam de 5 a 22 vezes mais mão-de-obra por hectare do que as fazendas maiores baseadas em mão-de-obra contratada, embora a proporção de solos de rendimento alto ou médio não variasse sensivelmente com o tamanho da fazenda. As fazendas grandes tendiam a empregar menos mão-de-obra do que seria exigido para maximizar os lucros, mesmo não havendo escassez de mão-de-obra. Nessas fazendas descobriu-se que a produção adicional que poderia ser obtida de mão-de-obra adicional era, em média, o dobro da taxa salarial em uso, ao passo que as fazendas pequenas tendiam a empregar mais mão-de-obra do que aquela que garantiria a maximização do lucro, provavelmente porque, em parte, membros da família tinham dificuldade em se empregar alhures (Kutcher & Scandizzo, 1981).

Os dados sugerem que a redistribuição das terras, de fazendas maiores para menores, poderia, em muitos casos, aumentar sensivelmente a produção e os empregos (e, naturalmente, a eqüidade). Foi o que se demonstrou num sofisticado exercício de simulação para o Nordeste (Kutcher & Sadizzo, 1981). Mas há qualificações importantes. Por exemplo, como os índices de alfabetização são baixos entre os pequenos agricultores, as fazendas de porte médio tendem a adotar inovações mais rapidamente. Para algumas combinações de safras e solos, a mecanização - e, com isso, os grandes campos - podem aumentar a produção. Naturalmente, a reforma agrária tem seus custos - é exigente em termos políticos e administrativos. E, èm muitos casos, a atividade agrícola, tanto antes como após a reforma agrária, pode ser descontinuada, com uma perda de potencial de produção. Esses custos devem ser pesados contra os ganhos potenciais. O Brasil é tão grande e diversificado que qualquer reforma agrária teria que se ajustar às necessidades específicas de cada área em que for implantada. Mas recentes declarações de funcionários do Governo, bem como o anúncio de reformas limitadas em algumas áreas onde eclodiu a violência ligada à disputa entre posseiros e proprietários, sugerem que a década de 80 poderá talvez ver a primeira reforma agrária séria da história do Brasil. Dela poderá resultar, no fim das contas, um grande aumento da produção de aumentos e da oferta de empregos, junto com uma grande expansão do mercado de bens de salário.

4.6 Resumo

O sério problema do balanço de pagamentos do Brasil, um ambiente internacional relativamente desfavorável, custos crescentes de energia e a necessidade de fazer cair a taxa de inflação fazem prever que a taxa viável de crescimento do PIB na década de 80 será da ordem de 5 a 6%, pelo menos durante a primeira metade da década. Dificuldades inesperadas poderão reduzi-la ainda mais. Se o Brasil quiser continuar ou acelerar seu progresso social sob essas condições difíceis, terá que fazer mais que continuar com o atual estilo de desenvolvimento. A estratégia de desenvolvimento que aqui delineei, que em muitos aspectos reflete a política oficial brasileira, poderia conseguir quatro coisas:

1. Diminuir as importações (em percentagem do PIB), reduzindo, essencialmente, a demanda de petróleo, trigo e tecnologia estrangeiros.

2. Aumentar o número de empregos por unidade de capital investido.

3. Concentrar benefícios naqueles que menos lucraram, até hoje, com ò processo de crescimento, com o conseqüente impacto social e político benéfico, fortalecendo então a coesão nacional.

4. Aumentar a produtividade da força de trabalho ao lhe proporcionar acesso à terra agrícola ou a empregos urbanos e ao investir maciçamente no desenvolvimento urbano - educação, saúde, planejamento familiar e nutrição - pavimentando, desse modo, o caminho para um crescimento mais rápido e mais amplo no futuro.

5. O PAPEL DA ASSISTÊNCIA INTERNACIONAL

Discutir as questões levantadas neste trabalho é fundamentalmente uma tarefa para brasileiros. A correção de algumas das disparidades extremas do bem-estar hoje encontradas entre brasileiros exigirá o estabelecimento de apoio político para a mudança da estratégia de desenvolvimento. A imprensa brasileira, a comunidade acadêmica e os políticos podem ajudar a construir esse apoio focalizando a atenção nacional nessas questões de desenvolvimento. Um debate nacional em bases amplas deveria ajudar a entender tanto os problemas quanto as soluções possíveis. O fornecimento de serviços públicos básicos necessitará de recursos administrativos públicos. Mas já existe hoje no Brasil a capacidade humana e financeira para executar esse trabalho, se se puder mobilizar o necessário apoio político.

Isso não significa que não haja espaço para a assistência estrangeira. O Banco Mundial, por exemplo, já está prestando apoio financeiro para programas de abastecimento de água, esgotos, habitações populares, educação, nutrição, produção e pesquisa de álcool e projetos de desenvolvimento rural para pequenos fazendeiros. Estes últimos, muitas vezes, contêm componentes de saúde e educação para a população da área coberta, inclusive famílias não-proprietárias de terras. O BID também tem se mostrado ativo em muitas dessas áreas.

Se o Governo brasileiro, porém, decidir intensificar seus esforços na reestruturação da economia para aumentar sua viabilidade social e política a longo prazo, além da econômica, as instituições financeiras internacionais poderiam também proporcionar empréstimos desvinculados de projetos, tanto para reduzir os custos sociais da necessária estabilização econômica quanto para ajudar a financiar os investimentos necessários. Assim, o FMI poderia proporcionar apoio geral para balanço de pagamentos, permitindo a ocorrência da necessária estabilização econômica e de reformas macroeconômicas a um custo menor em termos de crescimento e da oferta de empregos do que se faltasse esse apoio, dada a necessidade urgente de se fazer cair a inflação e de se lutar com um sério problema de balanço de pagamentos. O Banco Mundial poderia ajudar a financiar os investimentos exigidos com uma série de empréstimos "de ajuste estrutural" e empréstimos setoriais para serviços públicos básicos, possivelmente em colaboração com o BID e com bancos internacionais privados.

A assistência bilateral oficial ao desenvolvimento está hoje no Brasil em um nível baixo, e não parece haver grande probabilidade da sua reativação. Mas isto não será impossível, especialmente se o Brasil enunciar um objetivo claro de atacar seus problemas sociais e solicitar ajuda.

As empresas multinacionais com investimentos diretos no Brasil também teriam um papel a desempenhar. Aí, uma compreensão mais profunda dos problemas brasileiros é crítica, particularmente se significarem que a demanda em algumas áreas normalmente lucrativas será restringida por uma mudança da estratégia de desenvolvimento. Entretanto, a alteração do composto dos produtos na direção de bens de salários básicos poderá ser possível para várias dessas empresas. Para bens como automóveis, haverá ainda um mercado doméstico substancial, ainda que se expanda muito mais lentamente ou mesmo se encolha E há, ainda, o mercado de exportação para artigos de luxo, bem como para bens de salários básicos e equipamentos de capitais.

Finalmente, há muitos meios importantes pelos quais as fundações privadas e instituições de pesquisa poderiam prestar ajuda. Alguns bons exemplos são a pesquisa de novas safras e tecnologias para produção de álcool e outros combustíveis baseados em biomassa, o desenvolvimento de tecnologias de energia solar e a obtenção de simples vacinas ou curas para a esquistossomose e a doença de Chagas, que ainda ocorrem com freqüência no Brasil.

Em resumo, a comunidade internacional pode tornar mais fácil para o Brasil a reorientação de sua estratégia de desenvolvimento numa direção que favoreça o despontar do país, no final do século, como uma sociedade democrática bem-sucedida. Não convém às democracias ocidentais que o Brasil fracasse em seus esforços.

BIBLIOGRAFIA

Bacha, Edmar Lisboa & Unger, Roberto Mangabeira. Participação, salário e voto: um projeto de democracia para o Brasil. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978.

Berry, R. Albert & Cline, William R. Agrarian structure and productivity in developing countries. Baltimore, Johns Hopkins University Press, 1979.

Bhalla, Surjit S. Farm size, productivity and technical change in Indian agriculture. In: Berry & Cline, op. cit. 1979. Apêndice A.

Brown, Lester R., Food or fuel: new competition for the world's cropland Worldwatch paper, n 35. Washington, D.C., 1979.

Cardoso, Fernando Henrique. On the characterization of authoritarian, regimes in Latin America. In: Collier, David, ed. The new authoritarianism in Latin America. Princeton, Princeton University Press, 1979, cap. 2, p. 33-57.

Carvalho, José Alberto & Wood, Charles. Renda e concentração da mortalidade no Brasil. Estudos Econômicos 7(1):107-39,1977.

Chenery, Hollis; Ahluwalia, Montek S.; Bell, C. L. G.; Duloy, John H. & Jolly, Richard. Redistribution with growth. New York, Oxford University Press, 1974.

Cline, Willian R. Economic consequences of a land reform in Brazil Amsterdam, North-Holland, 1970.

Collier, David, ed. The new authoritarianism in Latin America. Princeton, Princeton University Press, 1979.

Griffin, Keith. The political economy of agrarian change: an essay on the green revolution. Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1974.

FIBGE. Censo agropecuário, 1975. Rio de Janeiro, 1979a.

______. Indicadores sociais: tabelas selecionadas, 1979. Rio de Janeiro, 1979b.

Homem de Melo, Fernando Bento. A agricultura nos . anos 80: perspectivas e conflitos entre objetivos de política. Trabalho para Discussão, n. 35. IPE, Universidade de São Paulo, 1980.

______ & Pelin, Eli Roberto. A crise energética e o setor agrícola no Brasil. São Paulo, 1980. mimeogr.

Ipea/Inpes. Uma nova opção para a economia. In: Diario Comércio & Indústria, São Paulo, 7-19 fev. 1978.

Knight, Peter T. et alii. Brazil: human resources special report. Includes Summary Report; Annex I, Population; Annex II, Employment, Earnings, and Income Distribution; Annex III, Health, Nutrition and Education; and Annex IV, Housing, Water Supply and Sewerage Washington, The World Bank, 1979.

Kutcher, Gary P. & Scandizzo, Pasquale L. The agricultural economy of Northeast Brazil Baltimore, Johns Hopkins University Press, 1981.

Moura da Silva, Adroaldo. Empregos e preços no curto prazo. Ensaios Econômicos 2, São Paulo, IPE/USP, 1979.

O'Donnell, Gullermo. Tensions in the bureaucratic-authoritarian state and the question of democracy. Collier, David, ed. The new authoritarianism in Latin America. Princeton, Princeton University Press, 1979. cap. 7, p. 285-318.

Pfeffermann, Guy & Webb, Richard. The distribution of income in Brazil. World Bank Staff Working Paper, n. 356. Washington, The World Bank, 1979.

República Federativa do Brasil. III Plano nacional de desenvolvimento, 1980/85 (Brasília: 1980).

Sahota, Gians & Rocca, Carlos A. Process of production and distribution in Brazilian agriculture. Economic Development and Cultural Change, 29(4):683-721, July 1981.

Saint, William S. Farming for energy: social options under Brazil's national alcohol program. Rio de Janeiro, The Ford Foundation, 1980. mimeogr.

Stepan, Alfred. The state and society: Peru in comparative perspective. Princeton, Princeton University Press, 1978.

Subsídios governamentais e a expansão da base monetária, Conjuntura Econômica, 33(3), mar. 1979.

World Bank. World development report, 1980. Washington, The World Bank, 1980.

______. World development report, 1981. Washington, The World Bank, 1981.

Zaghen, Paolo & Costa Rego, Luiz Carlos. Exportações e emprego no Brasil. Rio de Janeiro, Fundação Centro de Estudos do Comércio Exterior, 1979.

  • *

    Uma versão anterior deste documento foi preparada para a Comissão de Relações Estados Unidos-Brasil. Os pontos de vista e interpretações aqui apresentados são do autor e não devem ser atribuídos à Comissão, ao Banco Mundial ou a qualquer indivíduo agindo em nome deles. O autor gostaria de agradecer a Peter Cleaves, Micbael Crowe, Tom Faner, Alan Gebb, Peter Hakim, Margaret Daly Hayes, Fred Levy, Ricardo Moran, Adroaldo Moura da Silva, Phyllis Pomerantz, Joseph Quina, Bruce Ross-Larson, Alfred Stepan, Hamilton Tolosa e Adrian Wood seus valiosos comentários nos rascunhos preliminares.

  • 1

    Naturalmente, as dificuldades em institucionalizar um regime burocrático-autoritário estável e o problema da extricação conseqüente não são exclusivos do Brasil (ver Cardoso, 1979; O'Donnel, 1979; e Stepan, 1978).

  • 2

    Veja, n.º 607, 23 abr. 1980.

  • 3

    O Governo geral inclui o Governo federal (Tesouro, Fundo de Previdência Social e fundos federais autônomos), Governo estadual e governos municipais.

  • * Uma versão anterior deste documento foi preparada para a Comissão de Relações Estados Unidos-Brasil. Os pontos de vista e interpretações aqui apresentados são do autor e não devem ser atribuídos à Comissão, ao Banco Mundial ou a qualquer indivíduo agindo em nome deles. O autor gostaria de agradecer a Peter Cleaves, Micbael Crowe, Tom Faner, Alan Gebb, Peter Hakim, Margaret Daly Hayes, Fred Levy, Ricardo Moran, Adroaldo Moura da Silva, Phyllis Pomerantz, Joseph Quina, Bruce Ross-Larson, Alfred Stepan, Hamilton Tolosa e Adrian Wood seus valiosos comentários nos rascunhos preliminares. 1 Naturalmente, as dificuldades em institucionalizar um regime burocrático-autoritário estável e o problema da extricação conseqüente não são exclusivos do Brasil (ver Cardoso, 1979; O'Donnel, 1979; e Stepan, 1978). 2 Veja, n.º 607, 23 abr. 1980. 3 O Governo geral inclui o Governo federal (Tesouro, Fundo de Previdência Social e fundos federais autônomos), Governo estadual e governos municipais.

    Qual a diferença entre crescimento econômico e desenvolvimento socioeconômico *?

    O crescimento econômico diz respeito ao crescimento da produção de um país, em suas mais variadas áreas, bem como ao crescimento do PIB. Já o desenvolvimento socioeconômico reflete como o crescimento econômico é revertido em melhores condições de saúde, educação, transporte e segurança para os habitantes de um país.

    Qual a diferença entre crescimento econômico e desenvolvimento Sócio

    O crescimento econômico pode ser compreendido como o crescimento da economia, cujo principal indicador econômico é o PIB, enquanto que o desenvolvimento socioeconômico abrange PIB + indicadores sociais como no caso da China, com melhorias no IDH.

    Qual a relação entre crescimento econômico e desenvolvimento?

    Bem, o que nos parece mais claro é que crescimento econômico está diretamente relacionado com aumento da produção, queda da inflação, controle de juros, etc. Já o desenvolvimento econômico está relacionado, na verdade, com o bem-estar, qualidade de vida, distribuição de recursos, dentre outras características.

    Qual a diferença entre crescimento e desenvolvimento social?

    A principal diferença entre crescimento e desenvolvimento é que o primeiro não leva em consideração a igualdade social, pois não se interessa em nada além da produção de riquezas.