Que fatores explicam a retomada do crescimento econômico da Rússia e seu gradativo retorno à condição de potência?

3� Encontro Nacional ABRI 2011 2011

A Rússia como poder reemergente no século XXI: uma problematização do conceito de "emergente" em perspectiva histórica

Bruno Quadros e Quadros

Acad�mico do curso de Hist�ria da Universidade Federal do Paran� (UFPR) e bacharel em Rela��es Internacionais no Centro Universit�rio Curitiba (Unicuritiba). E-mail: . Site: http://www.linkedin.com/in/brunoquadros


RESUMO

Este trabalho objetiva problematizar, sob uma perspectiva hist�rica, a caracteriza��o da R�ssia como pa�s emergente no sistema internacional crescentemente multipolar do in�cio do s�culo XXI. Minha hip�tese � a de que essa caracteriza��o, advinda do l�xico jornal�stico, foi absorvida acriticamente pela academia e carece de uma fundamenta��o hist�rica mais acurada. Como alternativa, proponho o tratamento da R�ssia como ator reemergente no cen�rio internacional, levando-se em conta o fato de que a atual Federa��o Russa � o Estado sucessor do Imp�rio Russo e da Uni�o Sovi�tica, entidades pol�ticas que foram centrais em seus respectivos ordenamentos internacionais.
O trabalho est� dividido em duas partes. Na primeira, discuto o conceito de "pa�s emergente", aplicando-o ao caso da R�ssia. Na segunda, discorro sobre as intera��es do que hoje � a R�ssia com o ordenamento internacional ao longo do s�culo XX, passando por per�odos de caos e de estabilidade. Na Conclus�o, fa�o coment�rios sobre o papel da R�ssia como pot�ncia reemergente no s�culo XXI, apresentando as propostas russas para uma nova governan�a global e discutindo se o pa�s representa um fator de instabilidade ou de estabilidade sist�mica.

Palavras-chave: R�ssia; Emergente; Reemergente; Sistema internacional; Hist�ria das Rela��es Internacionais; Governan�a global


Introdu��o

A import�ncia da Federa��o Russa na atual ordem mundial n�o � objeto de pol�mica. O territ�rio mais extenso do mundo (mais de 17 milh�es de km2), um consider�vel aparato militar convencional e nuclear, um grande mercado consumidor (cerca de 143 milh�es de habitantes), uma economia diversificada, al�m de abundantes recursos ambientais e minerais, s�o alguns dos elementos que credenciam o pa�s a ter uma posi��o estrat�gica na agenda internacional.

Em decorr�ncia disso, a R�ssia vem sendo frequentemente tratada como uma pot�ncia emergente pela imprensa e por parte da academia, o que ser� demonstrado adiante. Meu argumento � o de que essa caracteriza��o carece de uma an�lise hist�rica mais cuidadosa, visto que o pa�s, sob outras denomina��es (Imp�rio Russo e Uni�o Sovi�tica), j� gozou do status de pot�ncia mundial durante o s�culo XX. O que se v� hoje � o processo de recupera��o desse status, ap�s a deteriora��o pol�tico-econ�mica sofrida pelo pa�s ap�s a queda da Uni�o Sovi�tica, na d�cada de 1990. Logo, a categoriza��o mais correta, em perspectiva hist�rica, � a da R�ssia como pot�ncia reemergente.

Este artigo pretende discutir o conceito de pa�s emergente e apresentar as raz�es pelas quais a R�ssia deve ser considerada uma pot�ncia reemergente. O trabalho baseou-se em fontes prim�rias da diplomacia russa - como o Conceito de Pol�tica Externa e a Doutrina Militar da Federa��o Russa -, bem como em trabalhos acad�micos (artigos e livros) sobre Hist�ria das Rela��es Internacionais e pol�tica externa russa.

1. O conceito de pa�s emergente

A despeito de sua utiliza��o - muitas vezes, indiscriminada - na atualidade, o conceito de pa�s emergente � relativamente recente e n�o possui ainda uma defini��o consolidada. � claro o tom eminentemente econ�mico da avalia��o da emerg�ncia de um pa�s, dado seu uso intercambi�vel com a ideia de pa�s em desenvolvimento na imprensa, em uma tentativa de superar a ultrapassada no��o de Terceiro Mundo. O Banco Mundial (2011, on-line), por exemplo, classifica como emergentes as economias de baixa e de m�dia renda, com valores per capita entre US$ 995 e US$ 12.195.

Por raz�es metodol�gicas, este artigo evitar� uma abordagem estritamente econ�mica e considerar� o conceito de pa�s emergente em uma perspectiva mais ampla, como a resultante de elementos econ�micos, pol�ticos e militares. Para os fins deste trabalho, pa�ses emergentes s�o aqueles que possuem todas ou a maioria das seguintes caracter�sticas:

(a)  Economias entre as maiores do mundo, com significativas taxas de crescimento econ�mico;
(b)  Processos relativamente tardios de industrializa��o, ocorridos no s�culo XX;
(c)   Recep��o de grandes somas de investimentos estrangeiros diretos;
(d)  Extensos recursos demogr�ficos;
(e)  Consider�vel capacidade militar convencional e/ou nuclear;
(f)    Influ�ncia pol�tica e econ�mica sobre seu entorno regional;
(g)  Ativismo crescente nos foros internacionais.

Considera-se que os pa�ses emergentes s�o aspirantes ao status de pot�ncia - ou j� o s�o de fato. Em outras palavras, eles desejam posicionar-se em patamares mais elevados do sistema internacional. Na discuss�o do conceito de pot�ncia, destaca-se a formula��o de Raymond Aron. Para ele:

[...] o status de uma unidade pol�tica � determinado pelo volume dos recursos, materiais e humanos, que ela pode consagrar � a��o diplom�tica e estrat�gica. As "grandes pot�ncias" de cada per�odo s�o consideradas capazes de dedicar recursos consider�veis � a��o externa e de conseguir muitos seguidores (ARON, 2002, p.124).

Da capacidade das grandes pot�ncias de conseguir muitos seguidores, assinalada por Aron, pode-se extrair a ess�ncia do conceito de soft power elaborado por Joseph Nye Jr, para quem o soft power � "the ability to get what you want through attraction rather than through coercion"1, capacidade que "could be cultivated through relations with allies, economic assistance, and cultural exchanges"2, resultando em "a more favorable public opinion and credibility abroad"3 (NYE JR., 1990).

Neste artigo, a vari�vel sist�mica ser� privilegiada, em que a an�lise da emerg�ncia de um Estado - neste caso, a reemerg�ncia da R�ssia - ser� feita com base no seu posicionamento hist�rico no sistema internacional.

A pr�pria caracteriza��o de todos os Estados que comp�em o BRICS (Brasil, R�ssia, �ndia, China e �frica do Sul) como emergentes pode ser questionada. China e �ndia dominavam a produ��o econ�mica mundial at� a ascens�o do Ocidente ap�s a Revolu��o Industrial do s�culo XIX (THE ECONOMIST, 2006, on-line). Como ser� exposto a seguir, a an�lise do caso russo demonstra que o pa�s j� deteve o status de grande pot�ncia no sistema internacional durante o s�culo XX, o que inviabiliza a adjetiva��o como pot�ncia emergente.

Em pesquisa realizada na Internet, foi promovida uma compara��o entre as ocorr�ncias que envolvem a R�ssia como emergente e as que arrolam o pa�s como reemergente, conforme consta na Tabela 1.

O levantamento realizado no mecanismo de buscas Google envolveu o voc�bulo "R�ssia", combinado com as palavras "emergente" e "reemergente", adicionadas aos substantivos "pot�ncia" e "pa�s". As combina��es de palavras foram pesquisadas em tr�s ambientes (Google. Google Not�cias e Google Acad�mico), com o objetivo de analisar o tratamento conferido � R�ssia por p�blicos espec�ficos - geral, jornal�stico e acad�mico, respectivamente. Embora n�o seja poss�vel atestar a rela��o direta entre os termos de pesquisa em todos os resultados encontrados - o que demandaria a an�lise individual dos milhares de textos -, pode-se inferir que eles est�o inseridos em um mesmo contexto.

Depreende-se da Tabela 1 que a predomin�ncia do tratamento da R�ssia como emergente � mais acentuada na pesquisa feita no Google (p�blico geral): os resultados dos termos de pesquisa caracterizando a R�ssia como reemergente (8.842) representam apenas 0,9% do total das ocorr�ncias tratando o pa�s como emergente (954.000). No Google Not�cias (p�blico jornal�stico), n�o houve refer�ncias � R�ssia como reemergente; enquanto isso, houve 126 men��es � emerg�ncia do pa�s. Finalmente, no Google Scholar (p�blico acad�mico), as ocorr�ncias da R�ssia como reemergente (156) alcan�aram somente 2% das refer�ncias ao pa�s como emergente (7.818).

Os resultados dessa pesquisa comprovam a ampla predomin�ncia da percep��o da R�ssia como emergente, em detrimento da concep��o do pa�s como reemergente - que � a perspectiva privilegiada neste trabalho.

2. A R�ssia e o sistema internacional

Nesta se��o, demonstraremos que, em v�rios momentos do s�culo XX, os vastos recursos econ�micos, demogr�ficos, pol�ticos e militares franquearam �s entidades pol�ticas antecessoras da atual Federa��o Russa (Imp�rio tsarista e Uni�o Sovi�tica) o status de grande pot�ncia no sistema internacional, o que inviabiliza a caracteriza��o do pa�s como pot�ncia emergente.

2.1. Imp�rio Russo (1900-1917)

Uma das cinco pot�ncias respons�veis pela sustenta��o do Concerto Europeu p�s-Congresso de Viena (1815) (CERVO, p.49 in SARAIVA, 2007), o Imp�rio Russo detinha um poder significativo nas duas primeiras d�cadas do s�culo XX, embora estivesse em um franco processo de degrada��o pol�tico-econ�mica, ocasionado por derrotas militares externas e por contesta��es pol�ticas internas.

Segundo o historiador Paul Kennedy (1989, p.226-227):

O imp�rio dos czares era tamb�m, na avalia��o da maioria dos historiadores, um membro autom�tico do seleto clube das "pot�ncias mundiais" no s�culo XX que se aproximava. Bastava o seu tamanho, que, estendendo-se da Finl�ndia a Vladivostok, assegurava-lhe isso - como tamb�m a sua popula��o gigantesca e de r�pido crescimento, e que era quase tr�s vezes a da Alemanha, e quase quatro vezes a da Gr�-Bretanha.

Em 1913, a R�ssia respondia por 8,2% da produ��o manufatureira mundial, assentando-se como a quarta maior pot�ncia industrial do planeta, atr�s dos Estados Unidos, da Alemanha e do Reino Unido, mas � frente de pot�ncias como a Fran�a, a �ustria-Hungria e a It�lia. Entretanto, a economia apresentava sinais de vulnerabilidade: a R�ssia havia assumido a maior d�vida externa do mundo; e a ind�stria era dominada por investidores estrangeiros, interessados nas mat�rias primas e no mercado consumidor do pa�s (Ibid., p.198, 228).

O reconhecimento do status de grande pot�ncia da R�ssia foi materializado pelo o fato de a capital do Imp�rio, S�o Petersburgo, estar no seleto grupo de capitais europeias que eram sede de embaixadas plenas, ao lado de cidades como Londres, Berlim, Viena e Constantinopla (KENNEDY, 1989, p.200).

�s v�speras da I Guerra Mundial, a R�ssia detinha o maior efetivo militar e naval entre todas as pot�ncias, com aproximadamente 1,35 milh�o de homens. O total de for�as mobilizadas pelo Imp�rio no transcurso da guerra alcan�ou 13 milh�es de homens, entre 1914 e 1919 (Ibid., p.200, 265).

A retirada russa da guerra em 1918, resultado dos dist�rbios pol�ticos internos, teve impacto direto no desfecho do conflito a favor da Tr�plice Entente. Henry Kissinger (1994, p.231) aponta que uma das raz�es para o fracasso do acordo de paz ap�s a I Guerra Mundial foi justamente a exclus�o das duas grandes pot�ncias da Europa (R�ssia e Alemanha) dos processos de negocia��o em Paris, em 1919.

2.2. Uni�o Sovi�tica (1922-1991)

Surgida ap�s os anos de conflito mundial, de revolu��es e de guerra civil na d�cada de 1910 e no in�cio da d�cada de 1920, a Uni�o Sovi�tica foi submetida ao isolamento internacional pelas pot�ncias ocidentais, devido ao car�ter potencialmente subversivo de seu regime bolchevique. A gradativa incorpora��o da Uni�o Sovi�tica no sistema internacional do entreguerras come�ou com a aproxima��o com a Alemanha de Weimar, consumada no Tratado de Rapallo (1922), passando pela normaliza��o das rela��es com todas as pot�ncias europeias, em 1924, e culminando na admiss�o de Moscou � Liga das Na��es, em 1934 (RENOUVIN, 1968, p.249-261).

O conturbado per�odo entre 1914 e 1923 teve um efeito devastador sobre a economia sovi�tica. Em 1920, a produ��o manufatureira representava apenas 12,8% do volume produzido em 1913, sendo somente em 1926 que a produ��o equiparou-se aos �ndices anteriores � guerra (KENNEDY, 1989, p.290).

No per�odo entre 1913 e 1938, a Uni�o Sovi�tica obteve o maior crescimento industrial entre todas as pot�ncias. Em 1938, a produ��o foi 7,5 vezes superior aos n�meros de 1913, como consequ�ncia da ado��o dos Planos Quinquenais e dos projetos de industrializa��o for�ada. A participa��o sovi�tica na produ��o manufatureira mundial tamb�m aumentou dramaticamente: de 5% (1929) para 17,6% (1938). Ao final da d�cada de 1930, a URSS era a segunda maior pot�ncia industrial do mundo, sendo superada pelos EUA (Ibid., p.290, 318).

A r�pida moderniza��o da economia permitiu � Uni�o Sovi�tica manter investimentos em defesa condizentes com o contexto de acirramento das tens�es internacionais na d�cada de 1930, preparando o pa�s para a iminente guerra mundial. As despesas sovi�ticas no setor foram equivalentes a US$ 4,5 bilh�es em 1938, ficando atr�s apenas dos gastos da Alemanha nazista (Ibid., p.287).

Como uma das duas superpot�ncias surgidas com o fim da II Guerra Mundial, a URSS foi parte importante na conforma��o dos arranjos institucionais p�s-1945. O mais c�lebre exemplo disso � a obten��o, por parte de Moscou, do assento permanente, com poder de veto, no Conselho de Seguran�a da ONU. O pr�prio reconhecimento da estrutura bipolar do sistema internacional da Guerra Fria, muito recorrente na literatura especializada, � uma constata��o do protagonismo da URSS, junto aos EUA, nos assuntos mundiais pelas pr�ximas quatro d�cadas (SARAIVA, p.188 in SARAIVA, 2007).

O Kremlin desenvolveu uma s�rie de institui��es para a manuten��o de sua hegemonia sobre o bloco sovi�tico e de sua influ�ncia sobre o mundo. O Conselho para Assist�ncia Econ�mica M�tua (Comecon) forneceu ajuda econ�mica aos Estados de orienta��o socialista pr�ximos � URSS. O Pacto de Vars�via, por sua vez, foi o contraponto sovi�tico � OTAN, ao mesmo tempo em que objetivou garantir o controle militar de Moscou sobre seus Estados sat�lites da Europa Oriental. Por fim, o Cominform buscou coordenar a atua��o dos partidos comunistas de orienta��o sovi�tica.

Embora a economia da URSS exibisse vigorosas taxas de crescimento at� meados da d�cada de 1970 (SEGRILLO, p. 96 in FUNAG, 2008), sustentadas, em grande parte, pelas exporta��es de hidrocarbonetos, a participa��o do pa�s no produto mundial declinou de 12,5%, em 1960, para 11,4%, em 1980, mantendo-se distante do n�vel de atividade econ�mica dos EUA no mesmo per�odo - de 25,9% do produto mundial, em 1960, para 21,5%, em 1980. Os gastos com defesa, por sua vez, passaram a representar uma parcela gradativamente maior da economia sovi�tica, tendo alcan�ado cerca de US$ 90 bilh�es em 1969, em um acr�scimo de aproximadamente 600% em rela��o aos valores de 1948. No per�odo entre 1948 e 1970, a URSS alternava-se com os EUA no posto de maior or�amento militar do planeta (KENNEDY, 1989, p.367, 415).

A Guerra Fria justificava essa necessidade de vultosos investimentos em defesa, uma vez que a estabilidade do sistema internacional bipolar repousava sobre a paridade estrat�gica entre as duas superpot�ncias. Por exemplo, a URSS e os EUA detinham, em 1985, praticamente o mesmo n�mero de ogivas nucleares estrat�gicas, cerca de 10 mil cada um. A correla��o de for�as navais indicava a superioridade quantitativa da URSS em submarinos nucleares e a diesel e em grandes navios de superf�cies, mas uma inferioridade no n�mero de avi�es navais em rela��o aos EUA (KENNEDY, 1989, p.478, 485).

Em meados da d�cada de 1970, iniciou-se o per�odo conhecido como "era da estagna��o" na URSS, marcado pela supress�o do crescimento econ�mico e pela persegui��o a dissidentes pol�ticos, a despeito da declara��o, feita no pre�mbulo da Constitui��o sovi�tica de 1977, de que a URSS havia se transformado em uma "sociedade socialista desenvolvida" (UNI�O SOVI�TICA, 1977, on-line).

Entre os fatores que contribu�ram para o desmantelamento da URSS, em 1991, destacam-se a hipertrofia do setor militar em rela��o ao conjunto da economia, a inadapta��o da economia planificada � revolu��o t�cnico-cient�fica da d�cada de 1970 (SEGRILLO, 2000) e a constitui��o de um "absolutismo burocr�tico" (LEWIN, 2007, p.461), comandado por uma elite dirigente apartada da realidade do pa�s, conhecida como nomenklatura (VOSLENSKY, 1980).

2.3. Federa��o Russa (1991-2011)

A conturbada d�cada de 1990 foi marcada pela transi��o para a democracia e para a economia de mercado, pelo decl�nio econ�mico, pelo crescimento da corrup��o e da criminalidade e por amea�as � integridade pol�tico-territorial da R�ssia (QUADROS, 2008, p.5-7). Embora fosse herdeira do vasto arsenal nuclear e do assento permanente da URSS no Conselho de Seguran�a da ONU, o pa�s n�o possu�a os meios materiais para manter a influ�ncia da URSS no mundo.

A fragilidade dom�stica atribuiu um car�ter reativo � diplomacia russa da �poca. A R�ssia teve de adaptar-se ao ordenamento internacional do p�s-Guerra Fria e de renegociar suas rela��es com o Ocidente, por meio da ades�o aos organismos financeiros multilaterais (Banco Mundial e FMI), da cria��o de novos arranjos institucionais para o espa�o p�s-sovi�tico e da acomoda��o com a OTAN. Em alguns casos, as posi��es russas foram flagrantemente ignoradas pelo Ocidente, como na interven��o da OTAN contra a Iugosl�via, em 1999, realizada � margem do Conselho de Seguran�a da ONU (QUADROS, 2008, p.6-8)

A revers�o do quadro de decad�ncia viria apenas na d�cada de 2000. A alta dos pre�os de petr�leo, em conjunto com a centraliza��o pol�tico-institucional promovida por Vladimir Putin, permitiu a retomada do crescimento econ�mico. A depress�o p�s-sovi�tica, no entanto, foi t�o profunda, que a R�ssia recuperaria apenas em 2006 os n�veis de produ��o econ�mica de 1991 - a queda do PIB russo na d�cada de 1990 foi mais acentuada que a dos EUA p�s-Grande Depress�o (RADVANYI, 2007, on-line; SEGRILLO, p. 84 in FUNAG, 2008).

A estabiliza��o pol�tica e econ�mica possibilitou a ado��o de uma pol�tica externa mais aut�noma e assertiva por parte da R�ssia, formulada com o objetivo de recuperar a influ�ncia internacional do pa�s. A ressurg�ncia russa passou a gerar atritos com outros Estados em ocasi�es espec�ficas, como na oposi��o de Moscou � Guerra do Iraque (2003), na amea�a de corte do suprimento de g�s natural russo � Europa ao longo da d�cada de 2000 e na atua��o do pa�s na Guerra de Agosto contra a Ge�rgia (2008). Ademais, as condi��es favor�veis obrigaram a R�ssia a reelaborar sua doutrina diplom�tica e militar.

Documento oficial e fonte prim�ria da diplomacia russa, o Conceito de Pol�tica Externa da Federa��o Russa (2008) cont�m a avalia��o de Moscou em rela��o aos fen�menos internacionais recentes, dando destaque ao 11 de setembro e �s mudan�as no padr�o de conflito contempor�neo. O texto reconhece o fortalecimento da R�ssia e o papel ampliado que o pa�s pode desempenhar nos assuntos mundiais. O documento tamb�m possui cr�ticas ao Ocidente, ao afirmar que "[t]he reaction to the prospect of loss by the historic West of its monopoly in global processes finds its expression, in particular, in the continued political and psychological policy of "containing" Russia [�]"4 (FEDERA��O RUSSA, 2008, on-line).

A nova Doutrina Militar do pa�s (2010), por sua vez, foi alvo de cr�ticas, entre outros motivos, pela cita��o da expans�o da OTAN como um dos principais perigos externos de guerra � R�ssia (FEDERA��O RUSSA, 2010, on-line). No entanto, o conte�do mais assertivo da Doutrina em rela��o � sua edi��o anterior deve ser entendido como parte do pr�prio processo de ressurg�ncia da R�ssia como poder de alcance global, caracterizado pela reabilita��o de sua economia e pela recupera��o dos investimentos em defesa. O aumento dos gastos militares � muito mais um projeto de reiniciar os investimentos na infraestrutura militar russa, que foi abandonada na d�cada de 1990, do que um movimento de militariza��o com vistas � ado��o de pol�ticas intervencionistas e expansionistas no plano internacional (QUADROS, 2010, on-line).

Conclus�o

Na primeira parte deste trabalho, constatou-se que os conceitos de "pot�ncia" e de pa�s "emergente" s�o apropriados para caracterizar o processo vivenciado pela R�ssia atualmente. Meu argumento, no entanto, � o de que esse n�o � um fen�meno novo no caso russo, o que � demonstrado pelos sucessivos movimentos de ascens�o e de decad�ncia sofridos pelo pa�s ao longo do s�culo XX.

A segunda se��o do artigo buscou analisar, em perspectiva hist�rica, as condicionantes econ�micas e militares do posicionamento da R�ssia nas diferentes conforma��es do sistema internacional no s�culo XX. Constatou-se que, em virtude de muitos fatores (extens�o territorial, posi��o estrat�gica, recursos naturais), a R�ssia sempre foi considerada nos c�lculos geopol�ticos e de pol�tica externa dos outros Estados. O Imp�rio Russo, mesmo em decad�ncia, foi fundamental para a estabilidade do Concerto Europeu at� o in�cio da I Guerra Mundial. A R�ssia sovi�tica e a URSS tiveram de ser isoladas pelas outras pot�ncias para evitar a difus�o do ide�rio bolchevique nos primeiros anos da d�cada de 1920. Posteriormente, a URSS teria papel decisivo na derrota do nazi-fascismo e ascenderia � condi��o de superpot�ncia no sistema internacional bipolar da Guerra Fria. A franca decad�ncia econ�mica e pol�tico-militar sofrida pela Federa��o Russa ap�s o desmantelamento da Uni�o Sovi�tica vem sendo revertida apenas na d�cada de 2000, em um processo que � equivocadamente percebido como a "emerg�ncia" da R�ssia.

Para se ter uma ideia desse movimento de recupera��o, os gastos militares da R�ssia foram equivalentes a US$ 58,7 bilh�es em 2010 (SIPRI, 2011, p.163), um valor bastante reduzido em rela��o ao padr�o sovi�tico - aproximadamente 35% menor em compara��o com as despesas em 1969 (US$ 89,8 bilh�es), por exemplo (KENNEDY, 1989, p.367). A economia da R�ssia p�s-sovi�tica, por sua vez, levou quinze anos para atingir o patamar produtivo do �ltimo ano da Uni�o Sovi�tica (1991), conforme j� foi mencionado (RADVANYI, 2007, on-line).

A caracteriza��o da R�ssia como pot�ncia reemergente - ainda minorit�ria ou quase inexistente no Brasil - tem sido crescentemente adotada por especialistas estrangeiros. O pa�s assim � tratado no t�tulo da obra Russia: Re-Emerging Great Power, editada por Roger Kanet (2007). Jeffrey Mankoff (2009, p.293), por sua vez, discorre sobre a ressurg�ncia da R�ssia no contexto da Guerra de Agosto. Por fim, Neil MacFarlane (2006, p.43) observa que "Russia is more properly seen as a state that has recently experienced substantial damage and is attempting to stop the bleeding"5.

O processo de reemerg�ncia da R�ssia est� acompanhado de uma s�rie de propostas do pa�s para o sistema internacional. O Kremlin tem se articulado, junto ao BRICS, para a reforma do sistema financeiro internacional, particularmente do sistema de vota��o no FMI e no Banco Mundial. A chancelaria russa tamb�m ap�ia a amplia��o do Conselho de Seguran�a da ONU (FEDERA��O RUSSA, 2008, on-line).

Apesar da contesta��o � hegemonia dos EUA e da �nfase em um mundo multipolar, a R�ssia tem atuado predominantemente como um agente a favor da estabilidade sist�mica. A proposta russa do Tratado de Seguran�a Europeia tem o objetivo, de acordo com o Kremlin, de estabelecer um mecanismo pan-europeu de seguran�a coletiva que supere a pol�tica de blocos herdada da Guerra Fria (Ibid., on-line). Ademais, a a��o russa tem sido fundamental para a estabilidade do espa�o p�s-sovi�tico, por meio de institui��es econ�micas e pol�tico-militares de governan�a regional como a Comunidade de Estados Independentes (CEI), a Organiza��o para Coopera��o de Xangai (OCS), a Organiza��o do Tratado de Seguran�a Coletiva (CSTO) e a Comunidade Econ�mica Eurasiana (EurAsEC).

Por fim, percebe-se a incipiente forma��o de um soft power russo nos dom�nios da coopera��o internacional, das telecomunica��es, da religi�o e da cultura. A R�ssia criou sua ag�ncia de coopera��o internacional (Rossotrudnichestvo), em 2008, e dedicou cerca de US$ 470 milh�es em ajuda oficial ao desenvolvimento (AOD), em 2010, dirigida principalmente para o regi�o p�s-sovi�tica e para a �frica (PROVOST, 2011, on-line)6. O lan�amento do canal televisivo multil�ngue Russia Today (RT), em 2005, tem o objetivo de transmitir a vers�o russa sobre os acontecimentos internacionais, buscando fornecer uma alternativa ao predom�nio das ag�ncias de not�cias ocidentais. A Igreja Ortodoxa Russa, por sua vez, possui a capacidade de influenciar o comportamento de milh�es de ortodoxos que vivem fora das fronteiras russas. Ademais, a difus�o da cultura e da l�ngua russa tem o potencial de criar empatias no exterior, de que servem de exemplos os Anos da R�ssia na China (2006), na Fran�a (2010) e na It�lia (2011).

REFER�NCIAS

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1. Tradu��o livre do autor: "a capacidade de obter o que voc� quer por meio da atra��o e n�o por meio da coer��o".
2. Tradu��o livre do autor: "poderia ser cultivada por meio de rela��es com aliados, de assist�ncia econ�mica e de interc�mbios culturais".
3. Tradu��o livre do autor: "uma opini�o p�blica mais favor�vel e credibilidade no exterior".
4. Tradu��o livre do autor: "A rea��o � possibilidade de perda pelo Ocidente hist�rico de seu monop�lio nos processos globais encontra sua express�o, em particular, na cont�nua pr�tica pol�tica e psicol�gica de 'conter' a R�ssia [...]".
5. Tradu��o livre do autor: "A R�ssia � mais propriamente vista como um Estado que tem recentemente sofrido danos substanciais e que est� tentando parar o sangramento".
6. H� que se destacar, contudo, que o montante ainda � significativamente menor em compara��o com a ajuda oferecida pela URSS - cerca de US$ 26 bilh�es, somente no ano de 1986 (PROVOST, 2011, on-line).

Quais os fatores que têm influenciado o crescimento econômico modesto na Rússia?

Os fatores que estimulavam o crescimento do PIB russo começaram a enfraquecer. Um deles foi o ritmo de aumento da força de trabalho. Antes de 2008, ela crescia a 2% por ano. Em um futuro próximo, ela deve se contrair em 1% por ano.

O que a Rússia fez para consolidar sua economia de mercado?

A Economia da Rússia é profundamente marcada não tão somente pela herança da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), da qual herdou 62% do potencial produtivo, mas também pelas reformas neoliberais praticadas no país a partir da década de 1990.

Qual era a situação econômica da Rússia?

Em 2008, a Rússia cresceu 6% e foi a 9ª economia do mundo. ... .

Qual é o ano que mostra a recessão da economia russa?

Dado o ambiente político altamente volátil, as previsões oficiais para a profundidade da recessão da Rússia variam. O Ministério da Economia disse em abril que o PIB pode cair mais de 12% este ano, após um crescimento de 4,7% em 2021, no que seria a maior contração desde meados da década de 1990.