Diferença entre estatais prestadoras de serviços públicos e concorrenciais

STATE-OWNED ENTERPRISES BETWEEN PUBLIC SERVICES AND ECONOMIC ACTIVITIES

    Resumo

    O artigo revisita a trajetória das empresas estatais no Brasil desde meados do século XX para melhor compreender sua natureza, sua missão e seus dilemas jurídicos contemporâneos. A partir de uma abordagem de economia política, analisa criticamente a consolidação da dicotomia serviço público versus atividade econômica como elemento constitutivo do regime jurídico das estatais e procura, ainda, investigar em que medida a Lei n. 13.303/2016 enfrenta e supera tal dicotomia, criando, ao mesmo tempo, novos dilemas, desafios e “efeitos colaterais”. O texto conclui que nem essa nova lei, nem o Supremo Tribunal Federal (STF) refletiram adequadamente as mudanças experimentadas pelas estatais, perpetuando o descompasso entre o direito e o plano da economia política em que estão inseridas. O STF chancela uma interpretação consolidada do regime jurídico aplicável às estatais, não refletindo adequadamente suas “metamorfoses”. Neste ponto, a nova lei acerta, mas também erra: acerta ao não diferenciar estatais prestadoras de serviço público de estatais destinadas a outras atividades econômicas. Erra, porém, por não tratar de forma específica da dicotomia aqui discutida, o que terminará por reforçar as interpretações do próprio STF. Além disso, a lei é, no momento, objeto de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), o que também pode limitar sua eficácia.

    Empresas estatais; economia política; serviços públicos; atividade econômica; Lei n. 13.303/2016

    Abstract

    This article revisits the trajectory of state-owned enterprises in Brazil to better understand their nature, their mission and the contemporary dilemmas they face. Based on a political economy approach, it provides a critical analysis of the crystalized public services versus economic activity dichotomy as a constitutive element of the state-owned enterprises legal regime, and also seeks to investigate whether Law n. 13.303/2016 overcomes such dichotomy, creating at the same time new dilemmas, challenges and “side effects”. It concludes that the Brazilian Supreme Court and the new statute have not adequately reflected changes through which state-owned companies have gone, perpetuating a mismatch between law and the political economy environment. The Supreme Court defers to a consolidated view, not adequately reflecting the “metamorphoses” gone through by the state-owned enterprises. With this respect, Law n. 13.303/2016 has its strengths and weaknesses. It is right by stating that it applies to both entities delivering public services and to those carrying other economic activities. However, since it fails to clearly relinquish the dichotomy at stake, the path for the Supreme Court to perpetuate its consolidated case law remains open. Moreover, the new statute it is currently subject of a Direct Action of Unconstitutionality, which may also limit its effectiveness.

    State-owned enterprises; political economy; public services; economic activity; Law n. 13.303/2016

    Introdução

    O propósito deste artigo é investigar em que medida a Lei n. 13.303/2016 1 1 Esta lei é objeto da ADI 5.624, que tramita no STF, como se verá adiante. enfrenta e supera a já consolidada dicotomia estatais prestadoras de serviços públicos versus estatais exploradoras de atividades econômicas. A análise é feita a partir da crítica dessa dicotomia como baliza da construção do regime jurídico das empresas estatais à luz dos aportes da economia política, que busca compreender a realidade econômica em seu contexto social, político e jurídico ( AVELÃS NUNES, 2007AVELÃS NUNES, António José. Uma introdução à economia política. São Paulo: Quartier Latin, 2007. , p. 49). O artigo também se dedica a mapear novos dilemas, desafios e “efeitos colaterais” resultantes das transformações pelas quais as estatais vêm passando no país.

    Além desta introdução e da conclusão, o artigo está dividido em duas partes: inicialmente ( Seção 1 ), revisita a trajetória das empresas estatais na segunda metade do século XX, investigando seu papel, funções econômicas e dilemas jurídicos na história brasileira. Isso é feito a partir da delimitação de três fases ou períodos históricos: (i) as nacionalizações e estatizações na Europa e o período desenvolvimentista no Brasil, (ii) a emergência do neoliberalismo e (iii) o momento posterior à crise financeira de 2008, marcado por certos esforços de retomada do papel do Estado na economia. Em seguida, investiga criticamente o emprego recorrente da dicotomia serviços públicos versus atividades econômicas como baliza da construção do regime jurídico a partir das mudanças trazidas pela Lei n. 13.303/2016 ( Seção 2 ).

    A Lei n. 13.303/2016 ficou conhecida como Lei de Responsabilidade das Estatais. Ela remete ao art. 173, § 1º, da Constituição (originário da Emenda Constitucional (EC) n. 19/1998), que conferiu à lei o dever de estabelecer “o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços”, mas é também uma resposta à prática de atos de corrupção envolvendo tais empresas. Essa norma não havia sido até há pouco editada, o que comprometia a efetividade da norma constitucional e do controle social das empresas estatais no país. O novo marco jurídico das estatais surgiu, assim, para preencher uma relevante lacuna do ordenamento jurídico brasileiro, podendo, por isso mesmo, ser uma valiosa oportunidade para aprimorar o regime jurídico das estatais, inclusive no que tange à superação da referida dicotomia.

    O artigo conclui que nem essa nova lei, nem o STF refletiram adequadamente as mudanças experimentadas pelas estatais, perpetuando uma assimetria entre o direito e o plano da economia política em que estão inseridas. O STF chancela uma interpretação consolidada do regime jurídico aplicável às estatais, não refletindo adequadamente suas “metamorfoses”. Neste ponto, a nova lei acerta, mas também erra: acerta ao não diferenciar estatais prestadoras de serviço público de estatais destinadas a outras atividades econômicas. Erra, porém, por não ter tratado de forma específica da dicotomia aqui discutida, o que terminará por reforçar as interpretações do próprio STF. Além disso, a nova lei é, no momento, objeto de uma ADI, o que também pode limitar sua eficácia.

    1. Economia política das empresas estatais

    Faz-se, nesta seção, uma breve incursão na economia política das empresas estatais, procurando, com isso, compreender seus papéis como instrumentos de atuação do Estado no domínio econômico. A análise percorrerá três fases históricas.

    1.1. Primeira fase: estatização na Europa e criação das empresas estatais no desenvolvimentismo brasileiro

    A empresa estatal, em sua conformação capitalista moderna, tem origem nas primeiras décadas do século XX. No caso europeu, seu surgimento está ligado aos processos de nacionalização e estatização. Três tipos de fatores explicam esses movimentos de economia política observados nos períodos pós-Primeira e, especialmente, pós-Segunda Guerra Mundial.

    A primeira ordem de fatores é político-ideológica: como aponta Pier Angelo Toninelli (2000TONINELLI, Pier Angelo. The rise and fall of public enterprise: the framework (Ch. 1). In: TONINELLI, Pier Angelo (ed.). The rise and fall of state-owned enterprise in the Western World. New York: Cambridge University Press, 2000. , p. 5-6), as estatizações e nacionalizações europeias estiveram lastreadas na premissa de que a propriedade pública poderia alterar a distribuição de poder na sociedade, engendrando um novo equilíbrio de forças no qual o trabalho adquiriria importância vis-à-vis o capital. 2 2 Shonfield (1968 , p. 128) descreveu essa nova configuração do pós-guerra e a denominou “empresa mista”. As empresas estatais permitiram ao Estado buscar o nível de demanda efetiva necessário ao pleno emprego, garantindo uma relação próxima entre poder privado e poder público. A concentração da autoridade econômica e o planejamento centralizado tornaram-se, assim, os instrumentos típicos da dinâmica capitalista do pós-guerra. A acumulação capitalista passa, então, a ser legitimada por uma coalizão de interesses, juridicamente estruturada, e as políticas keynesianas servem de fundamento teórico para esse pacto político-econômico e permitem a expansão do Welfare State . 3 3 Para Keynes, a mais importante agenda de ação para o Estado não se relaciona àquelas atividades que os indivíduos privados já desempenham, mas àquelas funções que não recaem na esfera do indivíduo, isto é, àquelas decisões que “ninguém adota se o Estado não o faz”, escreveu ele em “O fim do Laissez-Faire ” ( KEYNES, 1984 , p. 123).

    A implementação dessa agenda, porém, não respeita uma evolução linear e livre de problemas. É contraditório: o mesmo Estado que garante a reprodução do capital precisa dele extrair, cada vez mais, os recursos necessários para atender à crescente demanda expressa pela democracia ( KEANE, 1984KEANE, John (ed.). Introduction. In: OFFE, Claus. Contradictions of the Welfare State . London: Hutchinson, 1984. , p. 21-22). Há também uma contradição na pretensão do Estado de Bem-Estar Social de politizar o mercado e depender dos centros decisórios capitalistas privados, explica Claus Offe (1984)OFFE, Claus. Contradictions of the Welfare State (edited by Keane John). London: Hutchinson, 1984. . Isso porque o capitalista sempre pode, em última instância, decidir não investir, de modo que, ao tentar gerenciar os conflitos sociais do capitalismo liberal, o Estado Social engendra suas próprias crises. As empresas públicas, criadas em meio às contradições estruturais do Welfare State para elevar a taxa de investimento com menor dependência do capital, sem preocupação primordial com o lucro, devem ser, portanto, pensadas à luz disso que se chamou de contradições estruturais do capitalismo.

    A segunda ordem de fatores é de natureza social, ligada aos objetivos de melhoria das condições de trabalho e das relações industriais no Estado de Bem-Estar Social. Algo que em 1979 disse o então presidente austríaco Bruno Kreisky resume o que está em jogo: “é preferível acumular alguns bilhões de déficit público a ter alguns milhares de desempregados” ( TONINELLI, 2000TONINELLI, Pier Angelo. The rise and fall of public enterprise: the framework (Ch. 1). In: TONINELLI, Pier Angelo (ed.). The rise and fall of state-owned enterprise in the Western World. New York: Cambridge University Press, 2000. , p. 7). As estatais, em outras palavras, cumpriram funções-chave nas políticas welfaristas do pós-guerra, ao funcionar como polos geradores de postos de trabalho, capacitação e aprendizado técnico-burocrático.

    A terceira ordem de fatores é econômica: as guerras mundiais exigiram esforços armamentistas que levaram à estatização da siderurgia e da indústria de combustíveis para robustecer o poderio econômico-militar das potências centrais. Além disso, as estatais foram instrumentalizadas para corrigir falhas de mercado e se tornaram veículos de prestação de serviços públicos. O monopólio público, nesse contexto, foi considerado preferível ao monopólio privado, que tende a promover transferências regressivas de renda.

    As estatais, ademais, promoveram a transformação e a modernização econômica de regiões negligenciadas ou economicamente deprimidas. Elas podem fazer considerações de investimento de longo prazo e, em muitos casos, não se movem, em suas decisões estratégicas, pelo objetivo de maximização do lucro ou de remuneração máxima aos acionistas. Além disso, no bojo das políticas keynesianas, as estatais agiram de forma anticíclica em momentos de crise, para resgatar setores ou empresas privadas em dificuldades financeiras ou falidas. Nacionalizações desse tipo ocorreram na Itália, na Espanha e na Alemanha. No Reino Unido são conhecidos, por exemplo, os casos da Rolls-Royce, da Jaguar e da Rover na década de 1970 ( TONINELLI, 2000TONINELLI, Pier Angelo. The rise and fall of public enterprise: the framework (Ch. 1). In: TONINELLI, Pier Angelo (ed.). The rise and fall of state-owned enterprise in the Western World. New York: Cambridge University Press, 2000. , p. 9).

    No Brasil também houve estatizações, mas aqui as estatais surgiram primordialmente para preencher “espaços vazios” ( DAIN, 1977DAIN, Sulamis. Empresa estatal e política econômica no Brasil. In: MARTINS, Carlos Estevam. Estado e capitalismo no Brasil . São Paulo: Hucitec-Cebrap, 1977. p. 141-165. , p. 151), isto é, lacunas deixadas pelo mercado no desenvolvimento de projetos vultosos de infraestrutura e industrialização. Para Sônia Draibe (1985DRAIBE, Sônia. Rumos e metamorfoses: Estado e industrialização no Brasil: 1930/1960. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. , p. 190), as estatais brasileiras nasceram para atacar “pontos de estrangulamento” nos setores de energia e transporte e estiveram associadas à criação das chamadas indústrias de base. Sua gênese se relaciona, ainda, a uma burguesia nacional frágil e descapitalizada, assim como à falta de interesse inicial do capital estrangeiro.

    Na falta de um mercado de capitais organizado e de outros instrumentos de financiamento, o Estado brasileiro fez, sob a forma de empresas estatais, pesados investimentos em projetos intensivos em capital, com longo prazo de maturação, retorno incerto e baixa rentabilidade. Tratou-se, em outras palavras, da utilização das estatais como instrumentos de política industrial. Como apontam Hirschman (1960)HIRSCHMAN, Albert. Estratégia do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1960. , Amsden (2003)AMSDEN, Alice. The Rise of “The Rest”: challenges to the West from Late-Industrializing Economies. Oxford: Oxford University Press, 2003. e Evans (1979EVANS, Peter. Empresas multinacionais e relações Brasil-EUA. Revista de Administração de Empresas , v. 19, n. 3, p. 35-50, jul./set. 1979. , p. 35-50), as estatais ajudam na canalização de recursos apoiando o desenvolvimento de atividades capazes de produzir elevadas externalidades e ligações industriais na propulsão do desenvolvimento.

    Nas palavras de Maria da Conceição Tavares (1985TAVARES, Maria da Conceição. A acumulação de capital e industrialização no Brasil . Campinas: Unicamp, 1985. , p. 116), no Brasil, “é o Estado quem aparece como substituto da máquina de crescimento privado, na medida em que opera crescentemente nos setores pesados da indústria de bens de produção e nas suas operações de financiamento interno e externo”. E como anotou Celso Furtado (1981FURTADO, Celso. Estado e empresas transnacionais na industrialização periférica. Revista de Economia Política , v. 1, n. 1, jan./mar. 1981. , p. 46), a expansão das empresas estatais reflete o fenômeno pelo qual o Estado periférico passa a desempenhar um papel socializador de parte dos custos de produção, sem o qual não haveria uma estrutura de preços relativos necessária a dar continuidade à modernização. Nesse contexto, em 1941 é criada a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e em 1942 Vargas cria a Companhia Vale do Rio Doce.

    Durante a Segunda Guerra Mundial, o processo de transformação do Estado em empresário toma corpo no Brasil e, nessa empreitada, o governo justificava a criação de estatais como forma de suprir insumos básicos e proteger a soberania do país em nome da segurança nacional ( COSTA; MIANO, 2013COSTA, Frederico Lustosa da; MIANO, Vítor Yoshihara. Estatização e desestatização no Brasil: o papel das empresas estatais nos ciclos da intervenção governamental no domínio econômico. Revista de Gestión Pública , Santiago, v. II, n. 1, p. 145-181, enero-junio 2013. , p. 151). Ao longo dos anos 1940 e 1950, aumenta o número de empresas estatais − foram instituídas, entre outras, a Companhia Nacional de Álcalis, a Fábrica Nacional de Motores e a Companhia Hidrelétrica do São Francisco. Em 1952 é criado o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) e em outubro de 1953 é constituída a Petrobras. Isso se deu em meio a motivações marcadamente nacionalistas, que animaram o movimento O Petróleo é Nosso ( ALVEAL, 1994ALVEAL, Carmen. Os desbravadores: a Petrobras e a construção do Brasil industrial. Rio de Janeiro: Relume Dumará; ANPOCS, 1994. , p. 72).

    A partir do Plano de Metas de Juscelino Kubitschek, tem início uma nova etapa de industrialização, em que se avolumaram investimentos diretos do setor público nos setores definidos como prioritários ( DAIN, 1977DAIN, Sulamis. Empresa estatal e política econômica no Brasil. In: MARTINS, Carlos Estevam. Estado e capitalismo no Brasil . São Paulo: Hucitec-Cebrap, 1977. p. 141-165. , p. 145 e 151). Foram instituídas, entre outras, as Centrais Elétricas de Furnas (1957) e a Novacap (1956). Em 1961, Jânio Quadros autoriza a constituição da Eletrobras, para viabilizar a gestão integrada do sistema elétrico brasileiro. O governo – e as empresas estatais por ele geridas − haviam se transformado em instrumento deliberado e efetivo de desenvolvimento econômico.

    No período da ditadura civil-militar, o governo procurou dar às estatais maior “eficiência operacional”. Sob Castelo Branco, a política econômica mantém o caráter interventivo e passa, de forma explícita, a direcionar os investimentos dessas empresas. Sob Médici, a empresa estatal ganha protagonismo como instrumento de política econômica em oposição a outras formas de intervenção indireta na economia ( ENGLER PINTO JUNIOR, 2010ENGLER PINTO JUNIOR, Mario. Empresa estatal: função econômica e dilemas societários. São Paulo: Atlas, 2010. , p. 29). A partir dos anos 1970, as estatais se dedicam a ampliar a base tecnológica do país, com a criação da Embraer em 1969, da holding Telecomunica em 1969, da holding Telebras em 1972, da Siderbrás em 1973 e, em 1974, da Computadores e Sistemas Brasileiros S.A. (COBRA).

    O segundo Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) (1974-1976) propulsionou as estatais, expandindo sua atuação para mais além da siderurgia, do petróleo, do transporte e da exploração mineral em direção à petroquímica, à química pesada e aos setores aeronáutico e nuclear ( ENGLER PINTO JUNIOR, 2010ENGLER PINTO JUNIOR, Mario. Empresa estatal: função econômica e dilemas societários. São Paulo: Atlas, 2010. , p. 35-36). Em meados da década de 1970 encerra-se a fase de expansão do setor empresarial estatal no Brasil.

    A expansão das estatais no Brasil não teve conotações exclusivamente ideológicas, tendo prevalecido, sobretudo, uma racionalidade de respostas pragmáticas. Para Ianni (2009IANNI, Octavio. Estado e planejamento econômico no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009. , p. 291--292), seria, por isso, equivocado crer que o papel desempenhado pelo poder público na economia brasileira resulte da criação intencional e planejada de um “Capitalismo de Estado”. Diferentemente, como corrobora Fiori (1990FIORI, José Luis. Sonhos prussianos, crises brasileiras – leitura política de uma industrialização tardia. Ensaios FEE , Porto Alegre, v. 11, n. 1, p. 41-61, 1990. , p. 42), o Estado brasileiro sempre apoiou a reprodução do capital privado, nacional ou estrangeiro, em uma composição de forças tríplice.

    É bom lembrar que a estratégia de criação de empresas estatais demandou a criação de um novo arcabouço jurídico que não apenas desse conta da estruturação dessas novas instituições, como ainda pudesse disciplinar seu funcionamento e gestão cotidianos e planejamento de longo prazo. Nesse contexto, destaca-se a edição do Decreto-lei n. 200/1967, voltado a uma profunda reestruturação administrativa e a organizar um Estado gestor do desenvolvimento. Coube a ele conceber uma primeira tentativa de sistematizar o regime das sociedades de economia mista e das empresas públicas, constituindo a lei básica da reforma administrativa de 1967 ( WALD, 1977WALD, Arnoldo. As sociedades de economia mista e a nova Lei das Sociedades Anônimas. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 14, n. 54, abr./jun. 1977. , p. 100). Vale mencionar, ainda, a promulgação da Lei das Sociedades Anônimas em 1976 (Lei n. 6.404), que dedica seu Capítulo XIX (arts. 235-242) à disciplina das sociedades de economia mista, que têm obrigatoriamente a forma de S/A.

    1.2. Segunda fase: privatização

    Desde sua origem até os dias de hoje críticas são com frequência dirigidas às empresas estatais. 4 4 Vide voto do Ministro Marco Aurélio Mello na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 46-7/DF, julgada pelo STF. Elas são por muitos consideradas menos eficientes, além de inevitavelmente colonizadas por trocas políticas fisiológicas e não raro espúrias. Isso reflete o pano de fundo de descrença na própria capacidade do Estado de perseguir o interesse público, um traço constitutivo da economia política de matiz liberal.

    Em resposta sobretudo à macroeconomia keynesiana, as teses de autores como Hayek, Friedman, Stigler e Buchanan passaram, em meio à crise do Estado de Bem-Estar Social, a descrever o Estado como instituição hipertrofiada e maculada por interesses rentistas, oportunistas e egoístas. Argumentos como esses estão por trás das privatizações ocorridas nas décadas de 1980 e 1990 em todo o planeta. As primeiras privatizações motivadas pela ideologia neoliberal ocorreram, como é sabido, ainda na década de 1980, quando Margaret Thatcher aliena, apoiando-se em uma retórica populista, a BritOil, a British Telecom, a British Gas e a Rolls-Royce.

    Já nos países em desenvolvimento, a maioria das privatizações ocorreu no contexto da aplicação das políticas de ajuste estrutural surgidas no âmbito do receituário de austeridade econômica do Consenso de Washington, postas em marcha pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial. A América Latina privatizou intensamente: entre 1988 e 1996, 58% do total das privatizações ocorreram nessa região – mais de 800 empresas foram alienadas ( MANZETTI, 2000MANZETTI, Luigi (ed.). Regulatory policy in Latin America: post liberalization realities. Miami: North South Center/University of Miami, 2000. , p. 1). Também houve privatizações de grande vulto nas ex-Repúblicas Soviéticas, na França, na Alemanha, na Coreia, na China, no Japão, entre muitos outros casos. As privatizações tomaram o planeta de assalto nas décadas de 1980 e 1990, em particular, como parte de um novo influxo de teses e visões de mundo a respeito do papel do Estado e do mercado na promoção e no fomento do desenvolvimento econômico.

    No Brasil, a privatização se tornou uma prioridade de política pública e também uma questão de ideologia. Em 1990, foi instituído o Programa Nacional de Desestatização (PND). 5 5 Inicialmente pela Medida Provisória (MP) n. 155/1990, e depois pela sua conversão na Lei n. 8.031/1990. Ao final do breve governo Collor, 16 privatizações haviam sido concluídas. Em 1994, sob Itamar Franco, é privatizada a Embraer. Em 1995, já no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, deu-se a primeira privatização de empresa prestadora de serviço público, a elétrica Escelsa. Logo em seguida, em 1996, foram privatizadas as companhias elétricas estaduais Light e Cerj. Em 1997, vão a leilão a Companhia Vale do Rio Doce e o sistema Telebras. Nesse processo, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) deu suporte às privatizações financiando adquirentes estrangeiros − ao todo, estima-se que cerca de 110 empresas estatais federais e 28 estaduais foram privatizadas, ou tiveram parte de suas ações vendidas ( GOBETTI, 2010GOBETTI, Sérgio Wulff. Estatais e ajuste fiscal: uma análise da contribuição das empresas federais para o equilíbrio macroeconômico. Economia e Sociedade , Campinas, v. 19, p. 29-58, 2010. , p. 37). Nesse cenário, as estatais privatizadas no Brasil cumpriram mais uma vez uma função de instrumentos de política econômica. Dessa vez, porém, em vez de realizar investimentos produtivos, tiveram a receita de sua venda destinada ao abatimento da dívida do setor público.

    Para preparar o caminho das privatizações, a Constituição de 1988 foi diversas vezes emendada. Foram as “quebras de monopólio” nos setores de gás (EC n. 5/1995), telecomunicações (EC n. 8/1995), petróleo (EC n. 9/1995), navegação de cabotagem, entre outras. Além disso, leis federais regulamentaram o Programa Nacional de Desestatização (PND), voltado, nos termos adotados pelo legislador, a “transferir à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo setor público” (art. 1º, I, da Lei n. 9.491/1997).

    Sobretudo com a eclosão da crise financeira de 2008, mas mesmo antes disso, porém, o neoliberalismo começou a dar mostras inequívocas de seus limites e fissuras, como demonstram o crescimento econômico pífio dos países que adotaram as políticas de privatização, 6 6 As conclusões do relatório The Growth Report Strategies for Sustained Growth and Inclusive Development ( WORLD BANK, 2008 ) apontam que “depois da 2ª Guerra Mundial os países que atingiram crescimento econômico sustentado por mais de 25 anos foram precisamente os que, dentre as recomendações sugeridas pelo ‘Consenso de Washington’, negligenciaram privatização”. bem como a explosão da desigualdade de renda, riqueza e oportunidades em seguida observada.

    1.3. Terceira fase: retomada do ativismo estatal

    Desde o início dos anos 2000 e em especial com a crise financeira que eclode em 2008, uma nova configuração de economia política tem, aos poucos e não sem retrocessos parciais, tomado forma. No plano das ideias e das visões de mundo sobre o papel do Estado no desenvolvimento econômico, as análises neoliberais de “falhas de governo” passaram a ceder espaço para novas proposições voltadas a tematizar a importância e a centralidade do Estado. No Brasil, a resposta governamental veio com a retomada de políticas mais robustas nas áreas industrial, tecnológica e de comércio exterior, na infraestrutura e no campo social ( COUTINHO; SCHAPIRO, 2013COUTINHO, Diogo R.; SCHAPIRO, Mario G. Economia política e direito econômico: do desenvolvimentismo aos desafios da retomada do ativismo estatal. In: COSTA, José Augusto Fontoura; ANDRADE, José Maria Arruda de Andrade; MATSUO, Alexandra Mery Hansen (orgs.). Teoria e experiência: estudos em homenagem a Eros Roberto Grau. São Paulo: Malheiros, 2013. v. 1. ). No campo específico das empresas estatais, assistiu-se, em meio à crise, à nacionalização, nos países centrais, do Northern Rock Bank no Reino Unido, do Royal Bank of Scotland e à aquisição pelo governo americano de participação minoritária na General Motors, em 2008.

    No caso específico das empresas estatais brasileiras, chama atenção sua quantidade expressiva, mesmo após as privatizações: em 2016 havia 124 empresas estatais federais. 7 7 Conforme dados coletados no MP/ST/DEST (22/02/2016), e desconsideradas as 14 apontadas como em transferência e uma em liquidação. Importantes corporações jamais deixaram de estar sob controle do Estado brasileiro – a exemplo do Banco do Brasil, da Petrobras, da Eletrobras, da ECT (Correios), da Caixa Econômica Federal (CEF), do BNDES e da Embrapa.

    Novas empresas estatais têm sido criadas e outras são resgatadas no Brasil. Embora seja possível afirmar que existem diferentes racionalidades subjacentes a esses processos de criação e resgate, esse cenário em certa medida contrasta com as reformas da Administração Pública ocorridas nos anos 1990 e, conjugado com as sensíveis transformações por que passam as estatais, pode revelar, nos anos 2000, uma movimentação do capitalismo brasileiro em direção à exploração direta de algumas atividades (PEREIRA NETO; ADAMI; LANCIERI, 2014, p. 141 e 147-148).

    Alguns exemplos podem ser mencionados: em 2004 é criada a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e em 2009 é constituída a Pré-Sal Petróleo S/A. Em 2010 é reativada a Telebras, em 2012 são constituídas a Empresa Brasileira de Planejamento e Logística e a Amazônia Azul Tecnologias de Defesa S.A. Deu-se, ainda, a reestruturação do sistema Eletrobras e a ampliação significativa da ação dos bancos públicos no país. Além disso, por meio das chamadas parcerias público-privadas, vêm surgindo, como apontam Sundfeld, Souza e Motta Pinto (2013, p. 102-129), “empresas semiestatais”, nas quais o Estado não detém a integralidade ou mesmo maioria do capital votante, não integrando, assim, a estrutura da Administração Pública.

    Em meio a esta configuração de Estado, se explicitam e se acentuam “metamorfoses” nas empresas estatais, que, ao longo do tempo e com variações, passam a adquirir traços mais acentuados de corporação empresarial, como a abertura de capital em bolsa de valores, mecanismos de governança corporativa, políticas de compras e contratações desburocratizadas.

    Nesse cenário de crescimento de retomada do ativismo estatal, o protagonismo das estatais no Brasil, sobretudo pós-2014, vem sendo diariamente desafiado pelas crises econômicas e políticas e, mais recentemente, pelas repercussões da operação Lava Jato, que têm afetado a reputação de importantes estatais brasileiras, vinculadas a grandes esquemas de corrupção – como é o caso dos grupos Petrobras e Eletrobras. Isso cria um clima de incerteza sobre o futuro das estatais no Brasil e favorece a emergência de um debate público em torno do seu aprimoramento. Nesse contexto, destaca-se a já referida edição da Lei n. 13.303/2016, que preenche uma antiga lacuna no sistema jurídico, e em grande medida nasce como “resposta” à corrupção nas estatais, bem como à falta de transparência e controle de sua gestão.

    2. Regime jurídico das empresas estatais

    Traçado o pano de fundo da economia política das empresas estatais, analisa-se e discute-se, a seguir, a dicotomia serviço público versus atividade econômica como baliza da construção do seu regime jurídico. Procura-se, com isso, investigar em que medida a Lei n. 13.303/2016 enfrenta essa dicotomia e aponta para sua superação.

    2.1. A dicotomia serviço público versus atividade econômica como baliza do regime jurídico das empresas estatais

    Ainda sob a égide ditatorial da Constituição da 1967 emendada (CF/1969), autores clássicos do direito público passam a divisar no texto da Constituição uma separação da atuação direta do Estado na economia entre as chamadas atividades econômicas em sentido estrito e prestação de serviços públicos. 8 8 Exemplos emblemáticos e influentes são Bandeira de Mello (1979) e Grau (1981) . Nesta obra, Grau utiliza a expressão “iniciativa econômica” para se referir às atividades econômicas desenvolvidas pelo Estado que não correspondem a serviços públicos. Aqui, utiliza-se a expressão “atividade econômica em sentido amplo” como gênero que engloba “serviços públicos” e “atividades econômicas em sentido estrito” – consagrada na obra posterior de Grau (2006), inicialmente publicada em 1990, A ordem econômica na Constituição de 1988 , porque se acredita que foi com essa linguagem que a dicotomia se cristalizou na prática jurídica. Entendendo que a CF/1969 tratava de coisas distintas ao regular ambas as atividades em artigos específicos, GRAU (1981GRAU, Eros Roberto. Elementos de direito econômico . São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981. , p. 82-105) propôs a seguinte classificação das estatais:

    A) empresas estatais de serviço público:

    A.1) monopolizado;

    A.2) não monopolizado;

    B) empresas estatais de iniciativa econômica:

    B.1) em regime de monopólio;

    B.2) de apoio e estímulo à iniciativa privada;

    B.3) em caráter suplementar:

    B.3.1) produzindo para o mercado;

    B.3.2) de atividade de suporte à Administração.

    A classificação não era apenas um exercício de taxonomia jurídica. Dela se extraíram fundamentos para determinar, em termos infraconstitucionais e concretos, o regime jurídico das diferentes estatais. Às estatais de atividade econômica em sentido estrito foi atribuído o regime de liberdade de iniciativa econômica, enquanto as estatais de serviços públicos e aquelas que desenvolvessem atividade econômica em regime de monopólio não estariam vinculadas à regra do § 2º do art. 170 da CF/1969.

    No tratamento da atuação do Estado no domínio econômico a Constituição Federal de 1988 parece repetir a fórmula básica da CF/1969, adicionando-lhe detalhamentos, agora no Título VII – Da Ordem Econômica e Financeira . O art. 170 enuncia, de pronto, que a ordem econômica é (ou deverá ser) fundada na valorização do trabalho humano e na livre-iniciativa . O art. 173, caput , determina que, exceto pelas exceções propostas no próprio texto constitucional, “a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos de segurança nacional ou a relevante interesse coletivo”. O § 1º, inc. II, do mesmo dispositivo prevê então que a lei que vier a regular o estatuto da empresa pública e da sociedade de economista mista que explore “atividade econômica de produção ou comercialização de bens, ou de prestação de serviços” disporá sobre “a sujeição do regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários”.

    O art. 175 trata dos serviços públicos, determinando que incumbem ao Poder Público, ou a particulares delegados, sempre mediante licitação. E repete o comando de que a lei disporá sobre o regime das concessionárias e permissionárias de serviços públicos, os direitos dos usuários, a política tarifária e a obrigação de manter serviço adequado.

    Mantida essa estrutura, a doutrina brasileira seguiu valendo-se da separação entre serviços públicos e atividades econômicas em sentido estrito – ambas espécies do gênero atividades econômicas (em sentido amplo) −, entendendo que somente as em sentido estrito estariam sujeitas ao regime de livre-iniciativa e, portanto, impossibilitadas de gozar de privilégios não atribuíveis às empresas privadas ( GRAU, 2006GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. ). No STF, essa noção foi aplicada diversas vezes. As questões levadas ao STF versando sobre o regime jurídico das estatais tratavam basicamente das (a) regras que impunham restrições/ônus às empresas, normalmente relativas a (i) dever de contratar pessoal por meio de concurso público; (ii) dever de licitar; (iii) submissão ao controle dos Tribunais de Contas; e (iv) extensão dos privilégios típicos de entes de direito público às estatais, normalmente (v) impenhorabilidade de bens; e (vi) imunidade tributária. 9 9 VideMotta Pinto (2010) .

    Na jurisprudência do STF, o critério segundo o qual empresas estatais que exercem atividades econômicas estariam sujeitas a um regime de livre-iniciativa – e, portanto, não deveriam sofrer limitações que lhes retirasse a competitividade empresarial – foi utilizado já algumas vezes, para, por exemplo, permitir à Petrobras, sempre em sede de liminar, a utilização de seu Regulamento Simplificado de Contratações, aprovado pelo Decreto n. 2.745/1998 sob autorização da Lei n. 9.478/1997.

    Nesses casos, a Petrobras impetrou mandados de segurança em face de diversas decisões do Tribunal de Contas da União (TCU) que determinavam a aplicação da Lei n. 8.666/1993 e não do Decreto n. 2.745/1998, que o TCU entende inconstitucional, às contratações da empresa. Essas decisões liminares do STF afirmaram, além da incompetência do TCU para realizar controle de constitucionalidade, a legalidade da adoção de um regime simplificado de contratações pela estatal, considerando que a Petrobras vem atuando em regime de competição com outras empresas em diversas das suas frentes de negócio. 10 10 Decisões liminares proferidas em MS n. 26.783/DF, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 06/07/2007; Medida Cautelar em MS n. 25.888, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 22/03/2006; MS n. 26.410, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 15/02/2007; MS n. 27.743, Rel. Min. Carmem Lúcia, j. 01/12/2008. Parte do Regulamento Simplificado é suplantado pelas regras atinentes às licitações previstas na Lei n. 13.303/2016. O Regulamento tem sido alvo de críticas após os escândalos envolvendo a Petrobras no âmbito da Operação Lava Jato. Entende-se, contudo, que não se pode atribuir a ele a responsabilidade pelos desvios ocorridos na Petrobras, tanto que também foram relatados esquemas de corrupção em outras estatais que não adotavam esses regulamentos. A Lei n. 13.303/2017 também parece não atribuir ao regulamento a responsabilidade pelos desvios, tanto que determina que as estatais poderão editar seus regulamentos próprios de licitações e contratos (art. 40), o que em certa medida confirma a validade do Regulamento Simplificado da Petrobras. A questão da submissão da Petrobras ao regime previsto na Lei de Licitações (Lei n. 8.666/1993) voltou a ser apreciada, desta vez pelo plenário do STF, em setembro de 2016, quando o tribunal deu continuidade ao julgamento do Recurso Extraordinário (RE) n. 441.280, que havia se iniciado em 2011. O julgamento foi novamente suspenso nessa ocasião. Até o momento, com a ressalva de que o julgamento ainda não é definitivo, nove ministros já votaram, cinco em favor da dispensa do certame e quatro em sentido contrário. 11 11 Vide notícia do STF: “Plenário avança no julgamento de aplicação da Lei de Licitações à Petrobras” (22/09/2016). Vide também notícia do Valor Econômico: “STF volta a julgar se Petrobras deve cumprir Lei de Licitações” (23/09/2016). Ressalvamos que a Lei n. 13.303/2017 trouxe previsão expressa de que as estatais podem editar seus regulamentos próprios de licitações e contratos (art. 40), o que pode influir neste julgamento.

    Contudo, apenas as estatais que desenvolvem atividades econômicas (em sentido estrito) devem ser regidas pelo direito privado? Não seria necessário que uma estatal como a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), que têm ações listadas em bolsa, contasse com um regime garantidor de sua competitividade empresarial, por exemplo? Por outro lado, como até o momento da assinatura do contrato de concessão para a prestação de serviço público, a estatal atua como qualquer agente econômico – isto é, em competição com outros prestadores –, a incidência de privilégios em seu regime jurídico envolve, em última análise, a possibilidade de distorção da concorrência no setor.

    Há ainda outra dimensão a ser considerada, relacionada com a lente da economia política. Com o passar do tempo – e diferentemente da época em que foi pensada a referida dicotomia – tanto as empresas estatais prestadoras de serviço público quanto as exploradoras de atividade econômica em sentido estrito adquiriram, com variações, traços mais acentuados de corporação empresarial (abrindo capital em bolsa, criando mecanismos de governança corporativa, demandando compras e contratações desburocratizadas, etc.).

    No entanto, o fato de que as estatais de serviços públicos atrairiam um regime mais fortemente marcado pelo direito público, diverso do da livre-iniciativa, não impediu o STF de estender a elas os privilégios da impenhorabilidade de bens 12 12 O caso paradigma desta tendência, mencionado inclusive em julgados posteriores, é o julgamento conjunto de cinco recursos extraordinários envolvendo a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – RE 220.906-9/DF, RE 225.011-0/MG, RE 229.696-7/PE, RE 230.072-3/RS e RE 230.051-6/SP, Plenário, j. 16/11/2000. Diversos casos em que é afirmada a impenhorabilidade de bens da ECT seguem-se a este e estão listados e analisados no trabalho de Mesquita (2016 , p. 33 e ss., e 137 e ss.). Afirma-se o privilégio da impenhorabilidade de bens para outras empresas estatais em: Ação Cautelar n. 669/SP, Plenário, Rel. Min. Carlos Britto, j. 06/10/2005 (proposta pela Cia. do Metropolitano de São Paulo – Metrô); Recurso Especial n. 419.875/RO, Rel. Min. Eros Grau, decisão monocrática em 29/10/2008 (era recorrente a Empresa de Desenvolvimento Urbano); Recurso Especial n. 485.000/AL, Rel. Min. Ellen Gracie, decisão monocrática em 02/03/2009 (era recorrente a Cia. de Saneamento de Alagoas); Agravo Regimental em Recurso Especial n. 433.666/BA, 2ª Turma, Rel. Min. Eros Grau, j. 25/06/2009 (era Agravante a Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola S.A). Cf. Motta Pinto (2010 , p. 118). e da imunidade tributária recíproca, 13 13 No Recurso Extraordinário n. 407.099-5/RS, 2ª Turma, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 22/06/2014, é reconhecida a extensão das regras imunizantes à ECT (art. 150, VI, a e § 2º), por ela ser prestadora de serviço público. A partir dele, dezenas de julgados seguem a mesma linha. Cf. Mesquita (2016 , p. 35 e ss., e p. 162 e ss.). Também foi reconhecida imunidade tributária às empresas Companhia de Água e Esgotos de Rondônia (Ação Cautelar n. 1.550/RO, 2ª Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 06/02/2007); Empresa Brasileira da Infra-Estrutura Aeroportuária – Infraero (Agravo Regimental em Recurso Extraordinário n. 363.412, 2ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, j. 07/08/2007, e dezenas de casos que se seguiram ao precedente); Companhia de Habitação do Acre – COHAB (Ação Cautelar Ordinária n. 1.411/AC, Rel. Min. Joaquim Barbosa, decisão monocrática em 02/09/2009) e às entidades hospitalares Hospital Nossa Senhora da Conceição S.A., Hospital Cristo Redentor S.A. e Hospital Fêmina S.A. (Recurso Especial com Repercussão Geral n. 580.264/RS, Plenário, Red. acórdão Min. Ayres Brito, j. 16/12/2010). VideMotta Pinto (2010 , p. 151 e ss.). Os autores atualizaram os casos que ainda não haviam sido julgados em definitivo até 2010. típicos das pessoas jurídicas de direito público. Vale notar que tanto a norma da Constituição que determina o pagamento dos débitos das fazendas públicas federal, estaduais ou municipais por meio de precatórios (art. 100), quanto a que trata da imunidade tributária recíproca (art. 150) não fazem qualquer menção às estatais. O STF teve que ir além da letra da lei para garantir-lhes esses privilégios.

    No caso da impenhorabilidade de bens, mais do que garantir um privilégio incompatível com a livre-iniciativa, trata-se de regime conflitante com a natureza empresarial da entidade. Reconhecer ou negar a personalidade jurídica de direito privado e a forma empresarial às estatais que prestam serviços públicos não traz consequências apenas para a relação entre empresa estatal e Poder Público. Ela afeta aqueles que contratam com a estatal. Não parece razoável imaginar que aquele que contrata com uma empresa estatal prestadora de serviços públicos, caso venha a deter um crédito contra a empresa, deva cobrá-lo por meio do regime de precatórios. Essa circunstância traz consigo o risco de que o particular que contrate com a estatal precifique o risco de crédito de tal contraparte comercial em patamares altos, já que não terá como usar de eventual execução para satisfazer seu débito. Ou, ainda, inviabiliza a possibilidade de que a estatal de serviço público obtenha financiamento privado de maior monta, perdendo parte de sua capacidade de atuar no mercado.

    Um dos fundamentos das decisões do STF que reconhecem a impenhorabilidade de bens às estatais de serviços públicos é a proteção desses serviços. No entanto, as decisões não trazem uma definição do que seja serviço público. Na maior parte dos casos, o STF se furta ao exercício de verificar até que ponto é preciso tornar o patrimônio da empresa estatal imune a constrições para proteger o serviço público. 14 14 Em verdade, temos notícias de que a questão foi abordada pelo STF apenas na Ação Cautelar n. 669/SP, proposta pelo Metrô. O julgado, no entanto, não traz grande utilidade em termos de parâmetro, tendo em vista que determinou a suspensão de uma penhora que incidia sobre a quase totalidade das receitas tarifárias da empresa. Nos casos da ECT julgados em 2000, afirma-se a impossibilidade de se separar quais bens estariam afetos à prestação de serviços públicos e quais estariam empregados em outras atividades. Ao contrário, apenas determina a não sujeição de todo o patrimônio da empresa a constrição judicial. Há casos em que, como observa Motta Pinto (2010MOTTA PINTO, Henrique. Empresa estatal: modelo jurídico em crise? Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Departamento de Direito do Estado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010. 200f. , p. 174), basta ao Supremo “a sensação de que há atividade pública realizada pela estatal para que ela seja caracterizada como estatal de serviços públicos”, o que levaria a extensão de privilégios a empresas cuja classificação como estatais de serviços públicos seja questionável. 15 15 Como exemplos destes casos são mencionados o RE 419.875/RO, Recorrente Empresa de Desenvolvimento Urbano – EMDUR, decisão monocrática em 29/10/2008; e o RE-AgR 433.666/BA, Agravada Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola, 2ª Turma, j. 03/11/2009, ambos de relatoria do Min. Eros Grau.

    A determinação do regime aplicável às empresas estatais com base no objeto de sua atividade (se prestação de serviços públicos ou exercício de atividade econômica em sentido estrito), falha, ainda, ao não identificar a coexistência destas duas atividades em uma mesma empresa. A esse respeito, Justen Filho (2006JUSTEN FILHO, Marçal. Empresas estatais e a superação da dicotomia “Prestação de serviço público/ exploração de atividade econômica”. In: FIGUEIREDO, Marcelo; PONTES FILHO, Valmir (org.). Estudos de direito público em homenagem a Celso Antônio Bandeira de Mello . São Paulo: Malheiros, 2006. , p. 413 e ss.) observa que, no caso das estatais de serviço público, havendo potencial de outras frentes de negócio associadas à prestação de um serviço público, o aproveitamento dessas oportunidades é não apenas viável, como obrigatório, por ser um instrumento de garantia da modicidade tarifária. E, em havendo tal aproveitamento de outras atividades de negócio, seria mais razoável admitir uma pluralidade de regimes a regular as atividades desempenhadas pela estatal do que simplesmente determinar a submissão das atividades econômicas em sentido estrito desempenhadas pela entidade ao regime publicístico. 16 16 Sobre a convivência de diferentes atividades em uma mesma estatal, vide , também, Mesquita (2016) .

    Ainda, para além da imprecisa noção de serviço público que se verifica na jurisprudência, casos recentes indicam outras confusões decisórias. No Recurso Extraordinário n. 599.628/DF, em que a estatal Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A. (Eletronorte) pleiteava a impossibilidade de penhora de seus bens, para determinar que o caso não guardava semelhança com o caso da ECT julgado em 2000, o STF afirmou que a Eletronorte era uma sociedade de economia mista que tinha por objetivo auferir lucros, que seriam ulteriormente distribuídos a seus acionistas. Um elemento incapaz de, por si, afastar o caráter de estatal de serviço público, o que justificaria a adoção da mesma decisão dada no caso da ECT, se fosse adotada a linha de raciocínio do STF. Na verdade, a Eletronorte, assim como a ECT, presta serviços públicos e também desenvolve atividades econômicas em sentido estrito.

    Embora cheio de contradições, o caso é tomado como precedente no julgamento do Agravo Regimental interposto em face da decisão proferida no RE 531.538/AL. Na ocasião, o Min. Marco Aurélio manteve a penhora do faturamento da Companhia de Saneamento de Alagoas ao considerar a inexistência de precedente do STF determinando a execução de dívidas de sociedade de economia mista por meio de precatórios. Cabe a pergunta: onde está, nessa decisão, a consideração sobre o critério da prestação de serviços públicos?

    Conclui-se que a dicotomia serviço público versus atividade econômica em sentido estrito não resiste ao teste de realidade, pois não dá conta das situações em que ambas as atividades são exercidas por uma mesma empresa. Ela tampouco forneceu ao STF critérios suficientes a garantir coerência em suas decisões. Ainda, e mais grave, no tocante à extensão de privilégios incompatíveis com sua natureza empresarial às estatais de serviços públicos, o STF põe em risco a própria possibilidade de se prestar tais serviços por meio de estatais e distorce a competição. Ao fazer uma interpretação elástica e fluida do que vem a ser serviço público para estender o privilégio da impenhorabilidade de bens às estatais de serviços públicos, o tribunal parece, na verdade, buscar um subterfúgio para proteger o patrimônio das estatais, correndo o risco de incentivar sua gestão inconsequente. Ademais, adotada a lente de análise da economia política, vê-se que a jurisprudência do STF ainda não reflete adequadamente as “metamorfoses” das estatais, o que acentua um descompasso, uma assimetria entre o direito das estatais e o contexto histórico das mudanças do capitalismo. Cabe então indagar: como a nova lei das empresas estatais aborda o tema? Ela traz um caminho para transcender esta frágil dicotomia?

    2.2. Lei n. 13.303/2016: superação da dicotomia ou mero efeito colateral?

    A Constituição refere-se expressamente às estatais “exploradoras de atividade econômica”. Essa expressão, antes da edição da nova lei, levava vários doutrinadores a interpretar que seu estatuto, quando editado, se voltaria especificamente às empresas estatais exploradoras de atividade econômica em sentido estrito, não abarcando o universo de empresas estatais prestadoras de serviços públicos. 17 17 Neste sentido, por exemplo, Grotti (2004) , Di Pietro (2012 , p. 501) e Justen Filho (2012 , p. 258). Antes da edição da lei, alguns doutrinadores eram menos taxativos em relação à abrangência do dispositivo constitucional, por nele encontrarem fundamentos para uma possível dúvida, “sobre se o art. 173, § 1º, da CF, contempla todas as empresas públicas e sociedades de economia mista ou se incide apenas sobre aquelas que exploram atividade econômica e prestam serviços de natureza privada, com o que estariam de fora as que executam serviços públicos típicos” – palavras de Carvalho Filho (2014CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014. , p. 505-506).

    A lei aprovada estabelece regras voltadas a disciplinar a governança das estatais e a regular o tema das licitações e contratos. Porém, pretende ser uma lei geral das estatais, aplicável à totalidade dessas empresas. Nesse sentido, traz, já em seu art. 1º:

    Art. 1º Esta Lei dispõe sobre o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, abrangendo toda e qualquer empresa pública e sociedade de economia mista da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios que explore atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, ainda que a atividade econômica esteja sujeita ao regime de monopólio da União ou seja de prestação de serviços públicos . (grifo nosso)

    A abrangência da lei, como se vê, é expressa: ela tem por objetivo regrar todas as empresas estatais. Aparentemente, a lei quis superar a dicotomia empresas estatais prestadoras de serviços públicos e exploradoras de atividades econômicas em sentido estrito. Tanto assim que, ao tomar a expressão “atividade econômica” em seu sentido lato, a lei contemplou as estatais sujeitas ao regime de monopólio e as prestadoras de serviço público – e o fez de forma expressa, pretendendo afastar qualquer possível dúvida acerca da sua abrangência. 18 18 A Comissão Mista criada pelo ATN 3/2015 – CN concluiu seu trabalho com a apresentação de um relatório final, que é a Justificação da Lei n. 13.303/2016. Nela não consta expressamente o objetivo específico de superar a referida dicotomia, mas ele subjaz à própria elaboração da norma. Como se infere de trecho da referida Justificativa: “Inicialmente é feita a delimitação do âmbito de aplicabilidade das disposições legais trazidas pelo projeto. Nos termos do artigo 1º, as normas previstas no Projeto de Lei serão aplicadas a toda e qualquer empresa pública e sociedade de economia mista, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, inclusive as que exploram atividade econômica em sentido estrito, as que prestam serviços públicos e as que exploram atividade econômica sujeita ao regime de monopólio da União”.

    Há na lei uma clara intenção de trazer requisitos básicos que devem se aplicar a todas as estatais. É o caso dos requisitos mínimos de transparência previstos em seu art. 8º, entre os quais destaca-se a obrigação de elaborar e divulgar de forma ampla uma carta de políticas públicas, em que a empresa estatal deve expor quais os objetivos de política pública subjacentes à sua criação e como pretende atendê-los, permitindo, assim, um controle social de mérito sobre sua existência e atuação. É também o caso dos requisitos para nomeação aos cargos de diretoria e conselho de administração, que veda, entre outras hipóteses, a indicação de ocupantes de cargos políticos, altos cargos públicos comissionados e dirigentes de partidos políticos aos órgãos de administração, procurando salvaguardar a empresa de situações de conflito de interesse. 19 19 Trata-se de uma questão que não dependeria de vedação explícita se fossem observadas com rigor as regras de conflito de interesses previstas na Lei Federal n. 6.404, de 15 de dezembro de 1976. A lei continua sendo importante para disciplinar o conflito de interesses no exercício do direito de voto pelo ente estatal na condição de acionista.

    De especial importância para o tema aqui tratado, entre os dispositivos que se aplicam a todas as estatais – prestadoras de serviços ou de atividades econômicas –, o art. 27 parece trazer claras balizas de sustentabilidade financeira. O seu § 1º determina que a persecução do interesse público que justificou a criação da estatal deve estar “orientada para o alcance do bem-estar econômico e para a alocação socialmente eficiente dos recursos geridos pela empresa pública e pela sociedade de economia mista”. Complementando essa diretriz, os incisos I e II observam, respectivamente, que as estatais devem buscar a ampliação “economicamente sustentada” do acesso de consumidores aos bens e serviços produzidos pela estatal e o desenvolvimento ou emprego de tecnologia brasileira nos processos produtivos das empresas, sempre de maneira “economicamente justificada”. O § 2º, por sua vez, determina que as estatais adotem padrões de sustentabilidade ambiental e responsabilidade social corporativa “compatíveis com o mercado em que atuam”.

    A delimitação desses parâmetros e sua extensão tanto às estatais de serviço público quanto às prestadoras de outras atividades econômicas parece ter a clara intenção de submeter todas elas a um padrão mínimo de solvência, retirando-lhes a possibilidade de recorrer ao seu caráter de prestadoras de serviços públicos ou de veículos de realização de políticas públicas para justificar um desequilíbrio de suas contas e, futuramente, reivindicar privilégios como o da impenhorabilidade de bens como política de sobrevivência financeira.

    Chega-se com isso, enfim, à conclusão de que a nova Lei das Estatais pretendeu superar a dicotomia serviços públicos versus atividades econômicas em sentido estrito, embora não o tenha feito de modo explícito. Ela parece partir da premissa de que o art. 173, § 1º, da Constituição contempla todas as empresas estatais, independentemente dos serviços que prestam – o que de resto se coaduna com o emprego, na Constituição, da expressão “atividade econômica” em seu sentido amplo e não restrita às “em sentido estrito”. Neste caso, ao menos no que tange à disciplina das regras societárias e de licitações e contratos de que cuida a lei, não haveria qualquer justificativa para um estatuto jurídico exclusivo para as exploradoras de atividade econômica.

    Resta saber se, na prática, a superação ocorrerá. Isto porque o tratamento do tema pela Lei n. 13.303/2016 trouxe potenciais efeitos colaterais a serem enfrentados e resolvidos.

    O primeiro relaciona-se à própria intenção de superar pela via legislativa esta dicotomia que não é expressa na lei, mas um produto da doutrina adotado pela jurisprudência. Ainda que seja discutível e equivocado extrair do texto constitucional bases para sua perpetuação, há uma grande chance de a abrangência da Lei n. 13.303/2016 ser questionada − e até mesmo restringida − com a interpretação de que o art. 173, § 1º, da Constituição, com a redação dada pela EC n. 19/1998, teria incorporado a distinção. Neste caso, haveria inconstitucionalidade no fato de a lei estabelecer regime de atividade econômica para as prestadoras de serviço público.

    Tramita no STF a ADI 5.624, com pedido de medida cautelar. 20 20 Proposta pela Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal (Fenae) e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (Contraf/CUT). A ADI defende também (i) a inconstitucionalidade formal da lei, alegando que o processo legislativo de que resultou foi iniciado pelo Legislativo, quando deveria, necessariamente, ter sido inaugurado pelo Executivo (ADI, p. 17), ferindo o art. 61 da Constituição; (ii) a incompatibilidade de seu texto com os arts. 22, 25, 30 e 32 da Constituição, ao legislar sobre matérias reservadas aos poderes executivos federal, estadual, municipal e distrital; e (iii) ofensa aos arts. 5º e 8º da Constituição, por estabelecer requisitos para nomeação aos cargos dos órgãos de administração das estatais que feririam o princípio da isonomia e da liberdade de associação sindical. Para a discussão proposta neste artigo, entretanto, importa a alegada “excessiva abrangência” da lei. Houve pedido de medida cautelar para suspensão da eficácia da Lei n. 13.303/2016 ou pelo menos de seus arts. 1º, 7º, 16, 17, 22 e 25, até o momento não apreciado. O primeiro fundamento a embasar a alegação de inconstitucionalidade material da referida lei é sua “excessiva abrangência”. 21 21 STF, ADI 5.624, Petição inicial disponível no site do STF. Acesso em: 27 abr. 2018. Nos termos da petição inicial, “o Estatuto em tela somente poderia aplicar-se a empresas estatais que explorem atividade econômica em sentido estrito, vale dizer, em regime de competição com o mercado, não podendo tal estatuto ser aplicado às empresas prestadoras de serviços públicos ou que atuem em regime de monopólio ou de exclusividade pelo Estado”. 22 22 STF, ADI 5.624, Petição inicial, p. 29.

    A partir de uma argumentação lastreada nessas premissas e ainda no questionamento de outros dispositivos da lei, os requerentes pleiteiam a declaração de sua inconstitucionalidade, ou pelo menos de alguns dos seus artigos, entre os quais o art. 1º. Neste caso, pedem que seja aplicada a interpretação conforme a Constituição para que as normas alcancem exclusivamente as empresas públicas e sociedades de economia mista que explorem atividade econômica em sentido estrito, em regime de competição com o mercado.

    Ainda que a lei não venha a ser declarada inconstitucional − o que seria o correto −, o novo tratamento legislativo pode não gerar grandes impactos sobre os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais acerca do tema, para além da aplicação da Lei das Estatais também às prestadoras de serviços públicos. Vale dizer, a lei se limitaria a regrar as normas societárias e de licitação e contrato, mas, por não gerar um novo padrão de interpretação, não seria capaz de produzir efeitos significativos sobre o regime jurídico dicotômico aplicado às estatais pelo STF – e, portanto, não teria o condão de mitigar o fenômeno da “autarquização” das empresas estatais prestadoras de serviços públicos. 23 23 Motta Pinto (2010 , p. 77).

    Por outro lado, essa mesma abrangência da lei pode ser questionada sob outra perspectiva. Ao pretender disciplinar um conjunto tão grande e desigual de estatais, a Lei n. 13.303/2016 enfrenta um desafio em nada trivial. A norma caminhou bem ao avançar sobre a dicotomia empresas estatais de serviço público e de atividade econômica. Porém, em certa medida, pecou ao tratar de maneira mais ou menos uniforme de estatais que são tão diferentes entre si. Embora a nova lei tenha procurado mitigar essa heterogeneidade prevendo uma aplicação diferenciada, sobretudo dos seus aspectos societários, conforme determinados critérios nela adotados – como é o caso do faturamento 24 24 A lei se aplica parcialmente às estatais com receita operacional bruta inferior a 90 milhões de reais (art. 1º, § 1º). A elas se aplica o regramento referente a licitações e contratos, e também alguns dos dispositivos das “regras societárias” da lei, bem como o Capítulo III do Título II (“Da fiscalização pelo Estado e pela Sociedade”). e o grau de dependência em relação ao controlador –, 25 25 No art. 1º, § 2º, a lei prevê sua aplicação parcial às empresas públicas dependentes exploradoras de atividade econômica (em sentido amplo) – sobre estas incide o regramento referente às licitações e contratos (respectivamente, Capítulos I e II do Título II da lei), etc., não as “regras societárias” disciplinadas no Título I da lei. Tomando por base a classificação da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n. 101/2000, art. 2º, III), as estatais dependentes são aquelas que dependem de recursos financeiros do ente controlador para sobreviver, ou seja, as que não são capazes de por si só custear suas despesas, e por isso dependem da comunicação do orçamento do controlador com o seu orçamento. sua aplicação pode ser desafiada, por exemplo, pelas diversas realidades das empresas estatais dos diferentes Estados e Municípios brasileiros – muitas das quais terão dificuldade para se adequar aos dispositivos desta lei.

    Conclusão

    Na dimensão jurisprudencial, viu-se que a dicotomia serviço público versus atividade econômica em sentido estrito não dá conta das situações em que ambas as atividades são exercidas por uma mesma empresa e tampouco fornece ao STF critérios suficientes a garantir coerência em suas decisões. Ainda, e mais grave, no tocante à extensão de privilégios incompatíveis com sua natureza empresarial às estatais de serviços públicos, o STF põe em risco a própria possibilidade de se prestar tais serviços por meio de estatais, termina por involuntariamente distorcer a competição nos mercados e acaba, de maneira reflexa, gerando o risco de se incentivar uma gestão irresponsável dessas entidades. O STF, em suma, privilegia uma interpretação consolidada, não refletindo adequadamente as “metamorfoses” das estatais e as mudanças no plano da economia política, lente por meio da qual se pode perceber que as empresas estatais prestadoras de serviço público e de atividade econômica em sentido estrito adquiriram, com variações, traços mais acentuados de corporação empresarial.

    Na dimensão legal, conclui-se que a Lei n. 13.303/2016 avança ao tratar da totalidade das estatais e sujeitá-las ao regime nela previsto independentemente de serem empresas dedicadas à prestação de serviços públicos ou ao desenvolvimento de atividades econômicas em sentido estrito. Com isso, afasta o regime dicotômico incidente sobre elas e privilegia, assim, uma visão mais adequada às “metamorfoses” das estatais. Porém, a lei corre o risco de permitir que se perpetuem as interpretações do STF, por não as ter derrogado de forma expressa. Além disso, é, no momento, objeto de uma ADI, o que também pode limitar sua eficácia.

    A lente da economia política permite enxergar com ângulo alargado mudanças no capitalismo e possibilita melhor compreender dissonâncias, contradições e tensões no plano do direito. 26 26 Mais sobre as relações entre o direito econômico e a economia política, cf. Coutinho (2016) . Partindo dessa premissa analítica, neste trabalho, chega-se à conclusão de que o STF ainda não refletiu adequadamente as mudanças pelas quais passaram as estatais e as transformações do capitalismo brasileiro, e que a nova lei, não obstante tenha avançado em alguns pontos, corre o risco de permitir que se perpetue um descompasso, uma assimetria, que se provou pouco funcional para o deslinde de problemas reais que obstam o desenvolvimento do país.

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    Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Abr 2019
    • Data do Fascículo
      2019

    Histórico

    • Recebido
      27 Fev 2017
    • Aceito
      27 Set 2018

    Diferença entre estatais prestadoras de serviços públicos e concorrenciais