O pensamento de valtair contribui com a democracia por quê

Introdução

Apesar da democracia não ser a forma de governo que convém a todos os países, ela é – apesar de estar, supostamente, em declínio – a preponderante no mundo. Desde seu surgimento, a democracia – no que se refere aos seus conceitos, atores e práticas – alterou-se (com exceção da legitimidade),1 não correspondendo, dessa forma, o seu regime antigo (sendo seu notável exemplo a democracia direta de Atenas exercida, no século IV a.C. na ágora)2 à democracia moderna (principalmente no que concerne à democracia liberal que insurgiu, no século XX, momento entre guerras, na Europa, e que foi imposta à América Latina e, consequentemente, ao Brasil).

Hodiernamente, a democracia, não é considerada apenas enquanto fundamento de legitimação popular e de limitação do exercício do poder (deixando, assim, de ser tratada somente como um tema político), formatando-se como, propriamente, um método democrático (o qual se preocupa, inclusive, com a organização dos procedimentos administrativos realizados pelos poderes políticos legitimados e limitados) (CARDUCCI, 2017). Desde o século passado, momento de grande contraposição entre sistemas jurídicos (liberal-democrático versus totalitários-ditatoriais), entende-se que, apartada da Constituição, não existe democracia. É nesse mesmo período que a Filosofia, a História e a Política deixam de realizar o questionamento clássico de qual é a melhor forma de governo, uma vez que a democracia se consolidou. Assim, os estudos dos mais variados campos do saber passam a centrar-se em sua efetivação.

Hodiernamente, em razão de um somatório de fatores inter-relacionados e que se retroalimentam, como o neoliberalismo, a globalização, a simplificação das complexas diferenças sociais, a invisibilidade de grupos de pessoas, a crise dos partidos políticos, o terrorismo, a imigração, o déficit ambiental, a corrupção, entre outros, a democracia esvaziou-se enquanto forma de poder. E, talvez, os países em desenvolvimento (ou subdesenvolvidos) sejam os que mais sofram com a crise da democracia.

A democracia é um processo histórico e cultural, relacionado a vários fatores. Assim, a despeito de existirem atributos comuns, não há um único modelo e significado de democracia em todos os Estados. Inclusive, pode-se adjetivar o conceito de democracia. Logo, muitos que adotam a forma de governo democrática, infelizmente, nem sequer são democracias de fato. Portanto, também se deve prestar atenção à qualidade da democracia. Diante dessa teorização, cabe, inclusive, reflexão se os países que constitucionalmente adotam a democracia são substancialmente/metodologicamente democráticos.

Nesse contexto, o conceito de democracia é dinâmico, pois altera-se conforme especificidades espaciais (sejam elas culturais, sociais, econômicas etc.) e temporais, o que ocasiona profusão e confusão em relação ao seu sentido. Convém informar que a Constituição de cada Estado será a responsável por definir a democracia em seu ordenamento jurídico. Assim, separada da Constituição, a democracia é, apenas, um conceito incompleto e inseguro. Ainda, por derivar da política, a democracia, em sua essência, é conflituosa. Em razão de ser variável, é possível a manipulação de sua utilização com o intuito de mascarar intenções hegemônicas como se fossem decorrentes do poder do povo.

No século XXI, em linhas gerais, o que se evidencia é que a democracia, especialmente na América Latina, em recorte mais profundo, no Brasil, necessita ser (re)democratizada, pois ainda se encontra permeada de elementos autoritários e colonizadores, e, para tanto, faz-se essencial (re)pensar seu conceito, seus atores (pois está-se diante de “uma ideia de democracia carente de seu componente popular: uma democracia sem o povo” (MAIR, 2007, p. 23) e suas práticas.

No que concerne à metodologia, iniciando pela seleção da bibliografia para a redação deste trabalho, a fim de garantir relevância e rigor científico a ele, realizou-se busca no Journal of Democracy, em razão de ser reconhecido como o periódico de investigação mais importante sobre democracias. Ainda, selecionou-se bibliografia adicional, nacional e estrangeira para a redação deste trabalho. Diante do exposto, o presente artigo, no ramo das Ciências Humanas, por meio do método histórico, tem como objetivo geral investigar o conceito liberal de democracia no século XXI e a qualidade hexagonal da democracia diante de sua crise e de seu esvaziamento. Convém mencionar que a presente pesquisa dialoga com a história dos conceitos de Koselleck (2004, p. 24-45), por considerar que existem relações entre a linguagem e a história social. Informa-se que são apresentados fatos e dados neste trabalho para demonstrar que a democracia não é somente um paradigma teórico diante da complexidade e dos desafios da realidade contemporânea, mas sim um processo dinâmico.

Nesse sentido, é a problemática deste artigo: Como se apresenta a democracia no século XXI no que concerne à sua crise, ao seu conceito e à sua qualidade? A hipótese deste trabalho é que a democracia no século XXI encontra-se, ainda que resiliente, em desilusão e esvaziada, sendo que seu conceito liberal não é compatível com os problemas da modernidade, o que reflete na ausência de sua qualidade. Para o desenvolvimento deste trabalho, são adotados o método monográfico de procedimento e as técnicas de pesquisa bibliográfica e documental. Com base nessas considerações iniciais, passa-se à discussão da crise da democracia no século XXI.

A crise da democracia no século XXI: declínio ou resiliência?

O surgimento da democracia na Grécia Antiga, no século V a. C. (mais especificamente, por volta de 590 a. C.),3 cuja palavra adveio da justaposição de dêmos (povo) e kratía (poder), tendo, assim, por significado governo do povo, tinha como objetivo, com as reformas de Sólon, a criação de um regime político que, diferente do de Drácon, não fosse autoritário e nem baseado em leis opressoras. Elaborou-se, dessa forma, uma constituição que passou a prever que todas as decisões referentes à vida dos atenienses deveriam ser tomadas em assembleias (eclésias) mediante a participação direta do povo – que era constituído, em regra, apenas pelos cidadãos atenienses homens com mais de 18 anos (sendo excluídos, portanto, as mulheres, os escravos, as crianças e os estrangeiros) (RIBEIRO, 2001, p. 06-07). Desde então, o conceito de democracia está vinculado à lei.

Os romanos, diferenciando-se dos gregos, foram os responsáveis pela designação da democracia enquanto res publica (república) – entendida como coisa pertencente a todos os membros do povo (populus romanus) ou como questões pertinentes a todos – tendo em vista o bem comum (RIBEIRO, 2001, p. 06-07).

A forma de governo democrática, classificada pela teoria política como pura, boa e da maioria (sendo que ela pode degenerar, uma vez que a vida social é dinâmica, em anarquia e oclocracia [categorias más]), somente era considerada adequada, classicamente, em razão de suas características, para países pequenos e sem grandes riquezas4 (ROUSSEAU, 2003). Com o decorrer dos anos, a democracia foi modernizando-se e, nesse processo, alterou-se e adaptou-se à realidade de diferentes países (passando, portanto, a ser utilizada, em decorrência do estabelecimento da representação no exercício do poder, por países de grande extensão territorial e com economias desenvolvidas), consolidando-se, nesse sentido, como a forma de governo mais adotada pelos países.

Foi no período histórico posterior às Guerras Mundiais que a democracia se hegemonizou enquanto paradigma de governo. Segundo dados, de maneira geral, “houve impressionante progresso em termos de democratização no mundo inteiro ao longo de um período de quase 45 anos, aumentando o número de democracias eleitorais de cerca de 35 em 1970 para mais de 110 em 2014” (FUKUYAMA, 2015, p. 47).

Com a constitucionalização das democracias no século XX, a democracia tornou-se fundamento de legitimação popular de um Estado, bem como de limitação do exercício da política e norma jurídica orientadora de todas as suas ações e finalidades públicas, sendo, dessa maneira, considerada indispensável para a construção e consolidação de direitos e, também, para a formulação e execução de políticas públicas. Assim, o exercício da democracia passou a atrelar-se à efetividade da Constituição. Entretanto, este período, que deveria representar um reforço e, consequentemente, aumento da democracia pelo mundo, tem, pelo contrário, diante da complexidade da realidade social, demonstrado que ela está em crise.

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), o mundo contemporâneo, constituído por 193 países, é não democrático. Nesse contexto, o Democracy Index, um dos principais indicadores internacionais sobre a democracia, o qual é publicado anualmente pela revista The Economist, evidenciou certa recessão democrática global:

[...] quase metade dos países do mundo podem ser considerados democracias de algum tipo, mas o número de “democracias plenas” diminuiu de 20 em 2015 para 19 em 2016. Em razão do conturbado processo eleitoral, os Estados Unidos da América (EUA) foram rebaixados de uma “democracia plena” para uma “democracia defeituosa” (THE ECONOMIST, 2016, tradução nossa).

Convém explicar que o Democracy Index é o responsável por analisar 167 países com base em seu processo eleitoral e pluralismo, suas liberdades civis, seu funcionamento do governo, sua participação política e cultura política, realizando a classificação deles, alicerçado nos referidos parâmetros, em uma das cinco categorias seguintes: regime autoritário, regime híbrido, regime democrático, democracia defeituosa e democracia plena. Na América do Sul, conforme os dados de 2016, somente o Uruguai é reconhecido como uma democracia plena. Por sua vez, Bolívia e Venezuela são considerados regimes híbridos (autoritário-democrático). Já, os demais países – entre eles, o Brasil5 – são catalogados como democracias defeituosas (THE ECONOMIST, 2017). Desde já, deve-se observar que a democracia adjetivada como defeituosa acarreta um alargamento da percepção do que é democracia de fato.

Por outro lado, há quem defenda que, apesar da democracia estar enfrentando uma “era de desilusão” (no sentido de que, conforme Fukuyama (2015, p. 18), “o desempenho das democracias ao redor do mundo tem deixado a desejar nos últimos anos”), ela não se encontra, propriamente, em declínio:6 “um olhar sobre o registro empírico sugere pouca ou nenhuma evidência de um recessão democrática” (LEVITSKY; WAY, 2015, p. 45). Sugerem Levitsky e Way (2015, p. 56-57) uma maneira alternativa de entender o século XXI, não como um colapso, mas sim como período no qual deve ser exaltada a resilência da democracia, ao constatar que “ao longo da última década, vários acontecimentos mundiais representaram uma ameaça séria para novas democracias” e às democracias consolidadas:

Considerando que 23 países experimentaram uma melhora significativa em seus pontos no índice de democracia da Casa Branca entre 1999 e 2013, apenas oito sofreram um declínio significativo. Mesmo entre 2005 e 2013, o número de casos significativamente melhorados (10) excedeu o número de declinantes significativos (8). Além disso, a maioria dos declínios significativos não ocorreu em democracias, mas em regimes que já eram autoritários, como a República Centro-Africana, a Gâmbia, a Guiné-Bissau e a Jordânia. [...]. Embora seja certamente possível identificar casos de retrocessos democráticos, a existência de um número igual ou maior de avanços democráticos desmente qualquer noção de “colapso democrático” global (LEVITSKY; WAY, 2015, p. 47-48).

Apesar das divergências sobre seu declíniou ou resiliência, pode-se observar um esvaziamento da democracia no século XXI.

Problematização dos múltiplos fatores de esvaziamento da democracia no século XXI

Qualquer país que formalmente reconheça-se ou que seja internacionalmente reconhecido como uma democracia, está enfrentando, contemporaneamente, o esvaziamento da democracia, em razão de diversas causas. Isso significa que a democracia é diretamente afetada pelos problemas da realidade contemporânea precisando dar respostas a eles, o que não tem conseguido, colocando em dúvida a possibilidade de sobrevivência de sua constituição. São, em linhas gerais, alguns dos fatores (de natureza autoritária) do esvaziamento da democracia no século XXI: “a entrega da gestão coletiva a ‘especialistas’, a terceirização das decisões, a burocratização dos partidos políticos, o governo de grandes empresas e a sobreposição da economia financeira sobre a realidade social” (MONEDERO, 2012, p. 79).

Ainda, decorrentes do neoliberalismo, são outros motivos do esvaziamento democrático: a globalização (por acarretar a transterritorialização dos fluxos sociais do Estado nacional), a simplificação das complexidades sociais, os desenvolvimentos tecnológico e informacional, a queda da taxa de lucro, a tecnocracia da política, o terrorismo, a imigração, o déficit ambiental, a corrupção, entre outros (MONEDERO, 2009, p. 223-263). Diante dessa perspectiva, pode-se dizer que o Estado assumiu o papel de ser apenas o legitimador dos interesses do capitalismo e dos partidos políticos.

Aprofunda Monedero (2012, p. 74) que o esvaziamento da democracia é empiricamente perceptível, bem como local e global:

O vazio real da democracia, para além do olhar nostálgico de um passado idealizado, expressa-se, de maneira crua, na persistência ou no aumento das desigualdades, no fosso cada vez maior entre o Norte e o Sul, na devastação ambiental, no desemprego e na insegurança do emprego, na permanência de “áreas marrons”, onde o Estado não age e onde a violência urbana e a violência contra as mulheres é a norma, no oligopólio dos meios de comunicação, na ausência de reformas agrárias, na exclusão, na feminização da pobreza, no aumento das doenças, nas diferentes expectativas de vida em virtude da localização social e no acesso aos bens públicos, no aumento do orçamento da repressão e no compromisso da guerra como solução de conflitos. Em última análise, este vazio vincula-se a assuntos que têm a ver com o diferente lugar que se ocupa no âmbito da produção e da reprodução social, tanto nacional como internacional.

De imediato, convém destacar que muitas discussões sobre democracia partem do pressuposto de que os países são democráticos. Contudo, necessita-se desconstruir esse paradigma para que se incorpore a atual realidade em seu conceito e para que, então, consiga-se, de fato, o enfrentamento dos problemas sociais. Por exemplo, países da América Latina, com destaque para o Brasil, possuem alto índice de corrupção (em sentido amplo [BREI, 1996, p. 75]) e população despolitizada, sendo que grande parte dos cidadãos não possui uma vida digna. Assim, o imaginário da existência de uma democracia substancial somente faz com que essa situação se perpetue porque as medidas tomadas apenas mascaram interesses alheios enquanto vontade do povo sem encontrar soluções para o bem comum.

Também, importa mencionar que há ausência de representatividade de grande parte da população na política. Vive-se uma democracia esvaziada de povo (MAIR, 2007, p. 23). Apesar de constituírem a maior parte da população, a média mundial de participação das mulheres nos parlamentos é ainda muito incipiente: 23,2%. Deve-se ressaltar que a participação de mulheres negras, em vários lugares do mundo, como nos EUA e no Brasil, é ainda inferior ao das brancas (MULHERES INSPIRADORAS, 2017). Por muito tempo, foi obstado às mulheres a condição de cidadãs ativas, uma vez que, entre tantos motivos, seu voto, historicamente, foi delegado. Desde então, criou-se o paradigma de que a política é uma carreira tipicamente masculina, o que urge ser descontruído. Apesar do século XXI ser reconhecido como o da Revolução de Gênero, ainda prepondera a configuração patriarcal na sociedade (famílias heterossexuais, centradas no homem). O que se observa, portanto, é a colonização das mulheres porque ainda possuem condição subalterna perante os homens. Nessa configuração, não só as mulheres sofrem com falta de representatividade ou sub-representação, transgêneros, negros, pessoas portadoras de necessidades especiais, indígenas, entre outros, são uma minoria invisibilizada e esvaziada pela democracia moderna.

No mesmo sentido, como já referido, evidencia-se a existência de tensão/incompatibilidade entre a democracia e o capitalismo7 (MONEDERO, 2012, p. 64). c Convém explicar que o capitalismo converte elementos que não são produtos dele em mercadorias, o que contribui para o esvaziamento da democracia. São os casos da natureza, do conhecimento, da vida dos trabalhadores e das famílias. Importa lembrar que o Estado social surgiu como resposta ao capitalismo, tentando democratizá-lo. As origens do Estado do Bem-Estar estavam vinculadas aos crescentes conflitos sociais gerados pela economia capitalista de caráter liberal, que propugnava a não intervenção do Estado nas atividades produtivas. Formou-se, assim, uma relação triangular entre Estado, mercado e sociedade (nesta configuração, retirava-se elementos do mercado para serem gestados pelo Estado – a hierarquia, portanto, era estatal) (MONEDERO, 2009, p. 223-263).

Acabou acontecendo que o Welfare State entrou em crise impulsionado pelo neoliberalismo em decorrência, entre outros, da crise fiscal e da desorganização da classe trabalhadora. O modelo liberal de Estado que emergiu, infelizmente, deu somente respostas retóricas aos problemas do Estado Social na sua tentativa de superá-lo (MONEDERO, 2009, p. 260-263). O Estado voltou a adotar o papel de mercantilizador. Nesse contexto, criou-se a ilusão da existência de uma democracia sem conflitos (o que não é democracia). Dessa forma, problemas sociais (como de renda, gênero, ecológicos, refugiados, saúde, emprego etc.) acabaram agravando-se, acarretando o aumento da desigualdade. Nessa senda, convém, ainda que retoricamente, questionar: como efetivar a democracia num mundo desigual?

Hodiernamente, vive-se a crise do Estado liberal atrelada à crise da democracia (MONEDERO, 2012, p. 69). Assim, problematiza Monedero (2012, p. 82) que:

Em tempos de crise, a compatibilidade entre o capitalismo e a democracia retorna como uma pergunta. O financiamento da economia, a desregulamentação econômica e a capacidade de pressão de grandes empresas, são fatores que limitam a capacidade de gestão do Estado. Da mesma forma, a cartelização dos partidos políticos, a saturação audiovisual, o imaginário hegemônico consumista e a assunção pelas classes médias do “capitalismo popular” enfraqueceu o compromisso com os valores democráticos sociais do pós-guerra.

O esvaziamento da democracia está intimamente ligado, também, à proteção do meio ambiente.8 Há incompatibilidade entre a democracia e o ambiente devido a vários fatores, tais como a lógica capitalista, o individualismo, a (ir)responsabilidade sobre o planeta Terra, a ciência e os valores ocidentais. Explica Monedero (2009, p. 272-275) que o capitalismo industrial é incompatível com a sustentabilidade (em razão do consumismo, da ideia de necessidades ilimitadas etc.), acabando por converter a Terra e seus bens ambientais em mercadorias fictícias. Para o autor, isso resulta em degradação dos ecossistemas e da biosfera e em crises socioambientais, o que requer decrescimento.9 Hoje, o aquecimento global afeta de forma não democrática as pessoas no mundo, sendo que, conforme os ditames da justiça socioambiental (ACSELRAD; MELLO; BEZERRA, 2009) e de acordo com informações do relatório do Greenpace (2016),10, as vulneráveis são as que acabam por sofrer mais com suas consequências. Nesse sentido, convém refletir: a democracia pode ajudar a construir modelos de desenvolvimento compatíveis com o sistema ecológico do planeta? (CARDUCCI, 2017).

Nesse contexto, importa referir que:

A natureza, urge reconhecer, não é uma mercadoria. Se a democracia do século XX difundiu a tese da abundância, a democracia do século XXI vai trabalhar com a tese da moderação. Esta nova concepção de democracia exige uma nova cultura que incorpore a frugalidade, um menor consumo de energia em todos os seus aspectos, o uso de fontes de energia limpa, maior austeridade em definitivo. E pensar com sabedoria o desenvolvimento tecnológico existente, pois ele tem sido conduzido sob uma lógica que tem se mostrado prejudicial para a sobrevivência da humanidade (MONEDERO, 2009, p. 299-300).

Atualmente, na União Europeia, em realidade diferente da América Latina (e, por sua vez, do Brasil), o terrorismo, enquanto tática imoral violenta para dissuasão política, é o protagonista nas discussões sobre o esvaziamento da democracia. Os ataques terroristas que ocorrem hão mais de uma década na Europa, tornaram-se mais frequentes nos anos de 2016 e 2017, contabilizando centenas de vítimas (por explosões, tiros, atropelamentos, entre outros). Múltiplas são as suas motivações (religiosa, desemprego etc.), bem como seu recrutamento é difuso, o que dificulta o seu combate. Para tornar o cenário ainda mais complexo, o continente europeu está sofrendo intenso fluxo imigratório (tanto de forma legal quanto ilegal) da Síria e da região norte da África, o que preocupa as autoridades (policiais, administrativas, legislativas e judiciárias), pois há dificuldade de alocação de todas essas pessoas, bem como existe o receio de que, entre elas, possam haver terroristas. A insegurança faz com que medidas autoritárias sejam tomadas. Assim, faz-se necessário pensar em relação às limitações da democracia moderna: é ela capaz de dar respostas ao terrorismo?

Da mesma forma, vive-se sob uma ameaça diária de guerra nuclear11 que deixa clara as fragilidades da democracia. Os lançamentos de mísseis pela Coréia do Norte em direção ao Japão (com promessa de bomba de hidrogênio a ser lançada no mar do Pacífico), aliado dos EUA, bem como as ameaças do líder norte-coreano Kim Jong-un de ataque a Guam (território norte-americano na Micronésia), tem colocado a comunidade internacional em alerta. O perigo de combate é potencializado quando se tem um líder autoritário (Kim Jong-un) de um lado e outro presidente (Trump) que possui grande potencial bélico em seu poder e que afirma categoricamente que está pronto para um possível conflito armado, inclusive nuclear. O presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Donald Trump, já impôs sanções, com base no conjunto de sanções aprovadas, em 11/09/2017, pelo Conselho de Segurança da ONU, ao comércio de seu país com a Coréia do Norte, as quais foram consideradas cruéis, imorais e desumanas pelo líder norte-coreano Kim Jong-un.

Desde a sua eleição, em novembro de 2016, Trump, que possui perfil militar, conservador e polêmico – em razão da descoberta de sua relação com o governo russo (inclusive, com o compartilhamento de informações altamente secretas estatais), das suas reiteradas tentativas de obstruir a sua investigação pela justiça (em encontros com o FBI), dos vários processos que responde por assédio sexual, entre outros – tem colocado a democracia norte-americana, até então considerada plena/de alta intensidade, em xeque (sendo agora classificada como defeituosa/de baixa intensidade), podendo, inclusive, por meio de processo de impeachment (processo político), que nunca aconteceu nos EUA, ser destituído do poder. A república democrática federal norte-americana, um dos grandes paradigmas democráticos, demonstra, conforme o Democracy Index, sinais de esvaziamento.

Na América Latina, as ameaças à democracia diferenciam-se da União Europeia e, em linhas gerais, também do restante do mundo. Enquanto assuntos como terrorismo, imigração e guerra nuclear são, no momento, as principais preocupações no Hemisfério Norte, a América Latina, por sua vez, tem que lidar com corrupção, com ilegalidades, com violência etc. Assim como a Venezuela, apontada por possuir supostamente um governo ditatorial que se diz democrático, o Brasil é divulgado, em razão, entre outros, da Lava Jato, diuturnamente, na mídia internacional, como exemplo do esvaziamento ou, até mesmo, da ausência de democracia na América Latina. Recentemente, Jorge Glas, vice-presidente do Equador foi preso por ter sido acusado de receber propina da empresa brasileira Odebrecht. Ainda, a procuradora-geral da venezuelana, Luisa Ortega Díaz, foi destituída pela Assembleia Nacional Constituinte, por informar envolvimento do presidente do país, Nicólas Maduro, no esquema de pagamentos de propina realizado pela empreiteira Odebrecht.

Apresentado de forma geral o esvaziamento da democracia, percebe-se que seu atual modelo – em crise e desiludido – necessita ser repensado de forma sistêmica (com a redefinição de seu conceito e de suas práticas) – o que perpassa pela discussão de sua politização e redemocratização.

A democratização da pós-democracia e a politização da política: a importância do conflito

Perante a problematização dos múltiplos fatores de esvaziamento da democracia no século XXI, pode-se dizer que se está diante do fim da política, o que requer pensar alternativas para a construção de uma pós-política e de uma pós-democracia. No que concerne à reinvenção da democracia, deve-se entender que uma pós-democracia não trata de “[...] uma ideia nostálgica que torna possível o retorno ao passado, mas sim da (re)criação de uma ‘pós-democracia’ que entenda que não há possibilidade de recuperar a regra da maioria sem recuperar o conflito” (MONEDERO, 2012, p. 89). Portanto, há uma relação intrínseca entre política, democracia e conflito que foi esvaziada e que é um dos fatores da crise democrática do século XXI: “remova-se o conflito de uma sociedade e a política desaparecerá” (MONEDERO, 2012, p. 79).

A própria definição de política, que se reflete na democracia, é o potencial conflitivo, como bem explicita Monedero (2012, p. 79):

Entender que o que define a política é o potencial conflito (e os desvios de obediência) não é apostar pela desordem constante: é entender que nos grupos humanos, em tanto quanto haja desigualdades, a tensão política sempre vai ser protagonista. É assim como podemos definir a política: como aquela esfera do social ligada à definição e à articulação de metas coletivas de cumprimento obrigatório. É político o que afeta o coletivo de maneira imperativa. É consenso e dissenso. Algo essencial à vida social dos seres humanos, à sua condição de zoon politikon, o fato de que somos indivíduos, mas só sobrevivemos no grupo. A política é polis (a cidade presente) e polemos (a cidade a construir), objetivos comuns e coação. Mas a essência da política, o movimento, seu motor dialético, é o conflito motivado pelas vontades confrontadas. Sem conflito e poder, não podemos falar de política. O político implica em probabilidade de obediência e em certeza do uso da força para alcançá-la em última instância. Assim, por quase 200 anos, tem-se entendido política e Estado como sinônimos (embora agora sabemos que o Estado já não esgota o político). Assim, podemos entender mais claramente a diferença entre “a política” e “o político”. Trata-se de um continuum em cuja uma das extremidades estaria “a política” – como substantivo –, entendida como esses momentos em que toda a coletividade se vê envolta na definição e articulação de objetivos comuns, e, a partir daí, em gradação descendente, chega-se à outra extremidade, na qual se localiza “o político” –, agora como adjetivo, entendido como todo aquele concreto e cotidiano ligado à gestão de assuntos comuns obrigatórios.

Nesse contexto, a percepção social moderna de conflito tem um viés negativo (e, na verdade, ele é positivo).12 Diante disso, o conflito – na política e na democracia – foi neutralizado pela “despolitização da política”, passando-se a dar prevalência à “eficiência administrativa”. Nas palavras de Monedero (2012, p. 74-75):

A teoria liberal demonstra-se simpática e amável em relação à política e à democracia, mas, na verdade, não o é, uma vez que foi responsável pela “despolitização da política”. [...] a democracia, como uma forma de governo na qual os interesses de todo o povo são atendidos publicamente, sendo o mesmo povo parte do processo de decisão, tem mantido desde a Revolução Francesa uma teoria e uma prática divergentes. Todo o corpus liberal construído em nome da liberdade e contra o absolutismo monárquico durante os séculos XVII, XVIII e XIX lutou constantemente contra a “aristocrização” da burguesia e a restrição das liberdades, uma vez que esta se converteu em classe hegemônica. [...] A burguesia como classe em ascensão construiu o mito do progresso e, com ajuda de sua visão positiva da natureza humana – contrária ao pessimismo antropológico que dá primazia à política –, fez do conflito algo que era preciso banir. Isso atrelada a outros fatores acarretou [...] a “despolitização” da política, isto é, a conversão da política em um campo supostamente neutro no qual uma gestão administrativa eficiente deveria eliminar as lutas entre os diferentes grupos.

Convém destacar que não é possível a democracia sem a politização. Faz-se imperioso politizar o despolitizado (isto é, tudo aquilo que não se importa com o coletivo) em busca de emancipação. Para tanto, deve-se “politizar sem cair no totalitarismo; respeitar a condição individual sem alimentar a falta de solidariedade e egoísmo. Politizar para reconstruir a democracia com as novas realidades do século XXI”. (MONEDERO, 2012, p. 78-79).

Com base no exposto, passa-se ao estudo do conceito de democracia.

A (in)definição do conceito de democracia e a qualidade democrática

Cada conceito possui uma história. Há, portanto, conexão temporal entre as circunstâncias e a formulação dos conceitos de democracia (KOSELLECK, 2004, p. 30). No século XX, em vários países de diferentes continentes (como na América Latina, na África, na Ásia, na Europa, entre outros) a democracia perdeu seu lugar perante a insurgência de regimes autoritários. Dessa forma, desde a década de 90, mesmo com o movimento de democratização, houve “a persistência de velhas práticas e estilos políticos pouco condizentes com a democracia imaginada” (IAZZETTA, 2013, p. 140). Nesse contexto, “para a maior parte do mundo, a democracia tem sido um fenômeno infrequente ou recente”, o que tem acarretado a aplicação inadequada do seu conceito (IAZZETTA, 2013, p. 140).

Assim, evidencia-se uma “proliferação de fórmulas conceituais alternativas de democracia [gerais], incluindo uma surpreendente quantidade de subtipos de democracia com adjetivos [específicos]” (COLLIER; LEVITSKY, 1998, p. 106-108).13 É o que se denomina de adjetivação da democracia.

Sobre esse assunto, expõe Monedero (2012, p. 81) que:

Quando a “democracia liberal” tornou-se “liberalismo democrático”, quando o “governo do povo” foi substituído pela “política do governo”, começou a haver um mal-estar que tomou forma na sua linguagem política. Essas carências substantivas da democracia tentaram ser resolvidas com adjetivos. Então, começou-se a falar de “défice democrático” e acompanhar o termo “democracia” com qualificações como “de baixa intensidade”, “incompleta”, “incerta”, ou, na exacerbação do paradoxo, “autoritária”. Na expressão de Boaventura de Sousa, estamos diante de sociedades formalmente democráticas e socialmente fascistas. Com nome de democracia, porém com práticas totalitárias que são medidas em uma exclusão que pode alcançar mais de metade da população.

Convém informar que um regime é “considerado democrático em relação a uma definição procedimental mínima” (COLLIER; LEVITSKY, 1998, p. 106-108). Deve-se atentar para o fato de que esse standard é dado por indicadores internacionais dominantes que se baseiam na democracia liberal. Um dos maiores desafios, diante do exposto, é que a qualidade democrática não seja, apenas, mais uma adjetivação da democracia, uma vez que nos países latino-americanos ainda há ausência de qualidade democrática. Nesse sentido, para a investigação da “democraticidade da democracia”, a grande pergunta é: “quão democráticas são as nossas democracias?” (IAZZETTA, 2013, p. 140).

Para estabelecer-se a qualidade de algo, precisa-se possuir condições de mensurá-la (quantitativa e/ou qualitativamente) segundo determinados padrões. Então, surgem os desafios: “como deve-se avaliar uma democracia? Quais são os aspectos e dimensões da vida democrática que são suscetíveis de tal avaliação?” (IAZZETTA, 2013, p. 142).

Faz-se importante explicar que a qualidade da democracia é um conceito que deriva da própria democracia (ou seja, “do objeto que ela qualifica”), o que exige “um conceito de democracia claramente especificado e que se ajuste à ideia de qualidade de democracia” (IAZZETTA, 2013, p. 142). Acontece que a democracia é um conceito aberto e em construção, sendo da sua natureza política a conflituosidade (ou o controvertimento), de forma que sua definição, por possuir carga subjetiva e ideal, não será sempre consensual ou completa. Em outras palavras, há uma indefinição inerente à definição de democracia. Nesse sentido, diz-se que “há dois elementos que distinguem o conceito de democracia: seu caráter essencialmente debatível (ou disputável) e sua inevitável variabilidade” (IAZZETTA, 2013, p. 142), os quais estão estritamente relacionados com a qualidade da democracia.

A qualidade da democracia, que carrega em si as (in)definições da democracia, é, da mesma forma, um conceito complexo e multidimensional. Nessa perspectiva, deve-se atentar que:

Há uma distinção que deve ser levada em consideração entre os dois principais conceitos de qualidade da democracia que frequentemente se sobrepõem entre si. De uma parte, a qualidade entendida como “qualidade”, identidade própria, variante singular ou diferença específica, que permite distinguir uma democracia determinada como qualitativamente distinta das demais depois de ter sido classificada na mesma árvore hierárquica, genealógica ou, ao menos, tipológica, correspondente ao gênero universal dos regimes democráticos. Classificação que pode dizer respeito a diversos critérios: institucionais (democracia parlamentares, presidenciais, majoritárias, plebiscitária...), cultural (democracias anglo-saxônicas, nórdicas, latinas...), geográficas (democracias ocidentais, europeias, americanas, áfricas, orientais, asiáticas...), etc. De outra parte, a qualidade entendida como “qualificação”, avaliação técnica, grau de perfeição, nível de excelência ou de valoração moral, em uma escala quantitativa que varia do bem (máxima pontuação de valor positivo), qualidade tipicamente atribuída às democracias mais antigas e desenvolvidas, às que se supõe de alta qualidade (as anglo-saxônicas, as nórdicas), ao mal (máxima pontuação de valor negativo), como quando se fala de democracias defeituosas, imperfeitas ou de baixa qualidade, o que somente se atribui às democracias mais recentes, menos desenvolvidas ou em vias de institucionalização e de consolidação pendente (como as democracias latinas, asiáticas ou africanas). Para avaliar essas qualificações necessita-se comparar entre si as distintas qualidades, o que nem sempre resulta possível, pois falta dispor de uma vara de medir homogênea e compatível, que é o instrumento metodológico (de comparação e avaliação da qualidade das democracia). No geral, avalia-se as demais democracias comparando-as com as precursoras anglo-saxônicas e nórdicas, o que é uma falácia, porque assim estas atuam como juiz e parte. [...]. Para ordenar tão confusa ambiguidade faz falta essa vara de medir que sirva de guia orientador e proporcione algum critério autorizado de comparação e avaliação (CALVO, 2010, p. 32).

Hodiernamente, entende-se que são três as dimensões da qualidade da democracia que lhe dão significação: procedimentos (regras), conteúdos (direitos) e resultado (políticas públicas) (CALVO, 2010, p. 32). Segundo essa lógica, a qualidade democrática, enquanto um método, não é composta somente por elementos procedimentais (pois eles são insuficientes), necessitando-se avaliar seu conteúdo e seus resultados (IAZZETTA, 2013, p. 142-143).14

Nessa linha de raciocínio, com base no modelo de análise de Calvo (2010, p. 32-44), são os seis elementos que necessitam ser observados para que se alcance a qualidade da democracia: a legalidade ou o império da lei; a responsabilidade ou accountability (prestação de contas vertical e horizontal); o respeito às liberdades sociais e políticas ou à autonomia pessoal; a igualdade ou a justiça social (por meio da implementação de políticas públicas); a responsividade ou o serviço público; a legitimidade ou a confiança cívica em relação à democracia.

Nesse sentido, associando as três dimensões da qualidade da democracia (procedimentos normativos, retorno real [ou conteúdo] e satisfação das expectativas dos cidadãos [ou resultados]) com seus seis elementos, explica Calvo (2010, p. 34):

[...] a primeira dimensão de qualidade da democracia no que diz respeito a procedimentos é avaliada mediante dois parâmetros relacionados entre si: o princípio da legalidade (rule of law ou o império das leis) e a responsabilidade (ou accountability). A segunda dimensão da qualidade da democracia em relação a conteúdos é mensurada considerando dois valores fundamentais da democracia: a igualdade e a liberdade. A terceira dimensão de qualidade de democracia, no que se refere aos resultados, deve ser apreciada com base em outros dois princípios valorativos: da responsividade (responsiveness ou resposta às demandas cidadãs) e de legitimidade (percepção cidadã de confiança e satisfação com a democracia).

Nesse contexto, é a representação gráfica da relação das dimensões da qualidade democrática com seus elementos:

O pensamento de valtair contribui com a democracia por quê

Figura 1
Hexágono da qualidade democrática:
Fonte: Elaborada por Calvo (2010, p. 34)

Abaixo segue quadro que aprofunda os elementos hexagonais da qualidade da democracia:

O pensamento de valtair contribui com a democracia por quê

Quadro 1
Os aspectos negativos e positivos dos seis elementos que compõem a qualidade democrática:
Fonte: Elaborada por Calvo (2010, p. 44).

Ainda, a qualidade democrática, inserta no contexto de esvaziamento da democracia no século XXI, é complexa e tem relação com diferentes temas: igualdade de capacidades, questões de gênero, (in)cumprimento do contrato social, acesso a bens básicos, direitos civis e suas garantias, representação política (especialmente das minorias que são sub-representadas), direitos trabalhistas e previdenciários, capital e densidade social, partidos políticos, compromissos internacionais, participação popular, comportamento humano, pluralismo de informações, acesso à justiça, soberania econômica e alimentar etc. (MONEDERO, 2009, p. 270).

A democracia com qualidade exige um Estado de Direito verdadeiramente democrático que assegure direitos políticos, liberdades civis e mecanismos de responsabilidade que, por sua vez, afirmem a igualdade política de todos os cidadãos e limitem possíveis abusos do poder do Estado.

Nessa senda, convém apresentar que o atual conceito mais difundido de democracia é o de democracia liberal, o qual, em relação à qualidade democrática, não possui alta intensidade em relação à preponderância de aspectos positivos, uma vez que possui significado hegemônico (único e universal), importando-se demasiadamente com a forma procedimental visando a legitimação de governos. Sua formatação decorreu da Europa no período entre guerras, tendo como principal evento a derrocada da União Soviética que passou a marcar a dominação do modelo econômico capitalista e do ideal político de direita no mundo (“elitismo democrático”). Esse modelo de democracia caracteriza-se por homogeneizar a organização da sociedade, sendo hostil, então, à participação ativa dos cidadãos na política (SANTOS; AVRITZER, 2003, p. 50).

Para tornar ainda mais complexo esse cenário, a teoria e a prática democrática conflitam-se, pois o modelo hegemônico não responde às realidades de muitos locais, como é o caso da América Latina. Na América Latina, inclusive, é comum os regimes democráticos em âmbito nacional coexistirem com regimes subnacionais antidemocráticos. Diante desse contexto, surge a necessidade de emergência de uma democracia contra hegemônica, que seja plural e glocal (ou seja, a democracia não precisa ter, apenas, uma forma e deve fortalecer a articulação entre o global e o local). Essa alternativa transcende o pensamento eurocêntrico e o colonialismo cultural, demonstrando que se necessita romper com o modelo global ocidental de racionalidade científica como única forma de conhecimento (SANTOS; AVRITZER, 2003, p. 43-60).

Sobre a democracia em concepção não hegemônica, são as palavras de Santos e Avritzer (2003, p. 51; 56):

[...] a democracia não constitui um mero acidente ou uma simples obra de engenharia institucional. A democracia constitui uma nova gramática histórica. Não se trata [...] de pensar as determinações estruturais para a constituição dessa nova gramática. Trata-se, sim, de perceber que a democracia é uma forma sócio histórica e que tais formas não são determinadas por quaisquer tipos de leis naturais. [...] A democracia, nesse sentido, sempre implica ruptura com tradições estabelecidas e, portanto, a tentativa de instituição de novas determinações, novas normas e novas leis. É essa a indeterminação produzida pela gramática democrática, em vez apenas da indeterminação de não saber quem será o novo ocupante de uma posição de poder. [...]. Nos processos de redemocratização, junto com a ampliação da democracia ou da sua restauração, houve também um processo de redefinição do seu significado cultural ou da gramática social vigente.

Entretanto, a transição entre paradigmas (de uma democracia hegemônica para uma democracia não hegemônica) não ocorre de forma imediata, pois há um interregno temporal – sendo este, até mesmo, semi-invisível (BAUMAN, 2012, p. 49-56). É possível e necessária uma revolução científica da democracia. Nesse sentido, a semântica dos conceitos explica que as palavras podem permanecer enquanto os seus significados mudam (KOSELLECK, 2004, p. 30).15

Convém explicar ainda que a democracia possui um conceito aberto e variável se interpretada abstratamente, isto é, apartada de uma Constituição. É a norma fundamental de um Estado que estabelecerá e definirá a sua forma de governo e a(s) sua(s) prática(s). Portanto, a Constituição é a base positivada e racional da política e da democracia. Contudo, “mesmo entre países democráticos, as constituições diferem em pontos importantes” (DAHL, 2001, p. 48).

Desde o século passado, quando a democracia se insurgiu como um fenômeno de transição, de transformação dos regimes políticos no mundo, realiza-se a análise constitucional das democracias – ou seja, busca-se a relação entre as regras constitucionais e os processos políticos (uma vez que a política é considerada um processo jurídico). Contudo, foi somente no século XXI que a democracia, além de pressuposto de legitimação popular e de limitação do exercício do poder estatal, passou a ser considerada um método democrático, o que levou à ampliação de seu escopo para a averiguação de questões procedimentais, institucionais, entre outras (CARDUCCI, 2017).

Deve-se considerar que “[...] a realizabilidade da democracia, [orientada segundo diretivas axiológicas e normativas,] tem como exigência necessária e inarredável a efetividade da Constituição, o respeito à Constituição, o acato da força normativa de suas regras e princípios” (ESPÍNDOLA, 2003, p. 6). Assim, desrespeitar a democracia é desrespeitar a Constituição e vice-versa (ESPÍNDOLA, 2003). Nesse contexto, o Brasil reconhece-se constitucionalmente como uma república federativa presidencialista democrática, formatada num Estado Democrático de Direito, pois cria o Direito e submete-se a ele. Contudo, a instabilidade política no país – cujo governo, inclusive, passou recentemente por um processo de impeachment – tem colocado em risco a democracia e, até mesmo, a Constituição (havendo, inclusive, receio de intervenção militar), o que tem gerado discussões e propostas (nem sempre democraticamente adequadas) de reformas políticas.

Conclusão

Em resposta à problemática deste trabalho, confirma-se a hipótese introdutoriamente apresentada, pois verifica-se que a democracia, apesar da sua resiliência, encontra-se em crise e esvaziada por múltiplos fatores. As tradições políticas liberal (baseada no individualismo e na divisão de poderes) e a democrática (fundamentada na soberania popular e na igualdade) juntaram-se, dando origem ao liberalismo democrático. Contudo, o capitalismo não é compatível com a democracia. As crises econômicas, que são elementos cíclicos da economia capitalista, ocasionam a renúncia dos conteúdos emancipadores da tradição democrática.

A democracia é um processo histórico e cultural. Assim não há um único modelo e significado de democracia em todos os Estados. A necessidade de adjetivar ou multiadjetivar a democracia decorre das deficiências de sua definição. A democracia de baixa intensidade refere-se às democracias que tem que responder a menos conteúdos e, cada vez mais, a procedimentos mecanizados e distantes da participação popular. Necessita-se de democracias com qualidade. Nessa senda, reinventar a democracia passa por considerar: os direitos das minorias, as questões relacionadas à vida e à dignidade, os mecanismos de participação popular, os problemas ambientais, a proteção aos migrantes, um novo contrato social para o povo, os direitos sociais, uma mudança da lógica neoliberal, entre tantas outras importantes demandas.

Logo, o cenário para a construção de uma pós-política – que implicará, consequentemente, em mudanças nas Constituições e/ou em sua aplicabilidade – que tenha como pressuposto a qualidade da democracia, rompendo com os conceitos e indicadores internacionais hegemônicos e dominantes, diante da globalização e do neoliberalismo, é complexo, mas possível. O século XXI não é o fim da democracia, nem mesmo no Brasil, que desde o processo de impeachment presidencial, ocorrido em agosto de 2016, apresenta-se em grave crise, sendo, pelo contrário, o momento necessário para a discussão de sua crise, de seu conceito e de sua qualidade.

Referências

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Notas

1 Convém destacar que na democracia antiga e na democracia moderna “[...] o princípio da legitimidade é o mesmo, contudo todo o restante é distinto” (SARTORI, 2008, p. 57).

2 É preciso desmistificar a democracia direta ateniense, pois suas assembleias reuniam “poucos milhares de homens”, uma vez que “ela negava participação na ágora às mulheres, aos menores de idade, aos escravos e aos estrangeiros (que eram todos os não atenienses e seus descendentes: muitas pessoas nascidas em Atenas, mas de ancestrais estrangeiros, jamais teriam a cidadania ateniense)”. Ainda, “a sociedade grega não conhecia a complexidade da economia moderna. Os cidadãos tratavam da guerra e da paz, de assuntos políticos, mas parte razoável das discussões girava em torno da religião e das festas, também religiosas” (RIBEIRO, 2001, p. 06-07).

3 Este marco histórico não exclui que há evidências da existência de práticas democráticas em outras sociedades mais antigas, como em tribos, na Mesopotâmia etc.

4 Nesse contexto, a aristocracia seria a forma de governo adequada a Estados médios (em riqueza e em terras) e, por sua vez, a monarquia seria a adequada para Estados opulentos e de grande território.

5 Antes do impeachment da presidenta Dilma, cujo processo teve duração de 02 de dezembro de 2015 a 31 de agosto de 2016, o Brasil já era considerado uma democracia defeituosa. O que aconteceu nos anos de 2015 e 2016 foram quedas em seu índice de 7.38 (com referência no ano de 2014) para 6.96 em 2015 e para 6.90 em 2016 (THE ECONOMIST, 2017).

6 Há quem defenda o declínio – e não, portanto, a resiliência – da democracia no século XXI: “Arch Puddington advertiu em 2006 sobre o crescimento de um ‘impulso contra a democracia’, caracterizou 2007 e 2008 como anos de declínio democrático e afirmou que a erosão democrática ‘acelerou’ em 2009 e descreveu a democracia global como ‘sob coação’ em 2010. Após um breve momento de otimismo durante a Primavera Árabe, a Casa Branca alertou sobre um ‘recuo democrático’ em 2012 e um ‘ressurgimento autoritário’ em 2013” (LEVITSKY; WAY, 2015, p. 45).

7 Nesse sentido, reflete Sartori (2008, p. 125): “Na Segunda Guerra Mundial, triunfou a teoria economicista que sustenta que para transformar os regimes autocráticos em democracias faz falta um crescimento do bem-estar, e que o bem-estar traz consigo automaticamente a democracia. Em suma, a democracia depende do dinheiro e nasce com o dinheiro. É assim realmente?”. Para exemplificar o exposto, pode-se citar o caso da Troika em Portugal (cuja democracia, assim como no Brasil, é considerada de baixa intensidade), na qual os seus credores, agentes financeiros internacionais (tendo como representante principal o FMI), interviram no país, ainda que a pedido do presidente à época, e passaram a impor políticas econômicas que nem tinham sido votadas em eleição (e, portanto, não eram, propriamente, democráticas). Nesse caso, houve prevalência da economia sobre a democracia.

8 Nas palavras de Sartori (2008, p. 133): “O paradoxo é que o sistema econômico de mercado tem promovido, durante aproximadamente duzentos anos, a democracia liberal, enquanto que, agora, ameaça ela com uma aceleração descontrolada cuja implosão pode chegar a arrasar a democracia que havia criado. Um cataclismo climático e ambiental pode levá-la junto com todo o restante, inclusive a cidade livre. Porque o desenvolvimento não sustentável é também um desenvolvimento inaceitável que impõe um retorno àquele passado de pobreza que havíamos deixado para trás”.

9 Nesse sentido, a solução sai da lógica capitalista. Decrescer, para a construção de uma democracia e de cidadania ecológica, é um projeto possível e necessário. Precisa-se reconhecer que “[...] há forma de crescimento diferente nos países empobrecidos “. Ainda, “necessita-se reduzir os níveis de consumo dos países desenvolvidos” (MONEDERO, 2009, p. 272; 303).

10 Apresenta o relatório “E agora, José? O clima mudou, a luz apagou, a água sumiu” do Greenpeace (2016, p. 04) que: “o aquecimento global não significa apenas temperaturas mais quentes, mas principalmente a alteração de padrões de comportamento do clima, com impactos sobre a frequência de chuvas e ventos, por exemplo. Países como o Brasil são mais suscetíveis a essas alterações climáticas, já que possui uma parcela fundamental da sua economia baseada no uso de recursos naturais e na regularidade do clima, destacadamente em setores como a agricultura e a geração de eletricidade. [...]. Do encarecimento dos alimentos da cesta básica aos impactos em transporte e infraestrutura urbana, não há dúvida de que a população mais pobre é a primeira a sentir as alterações. Serão os brasileiros em pior situação econômica e social justamente os que mais sofrerão”.

11 Paul Rogers (2017, “Conclusion”, par. 1) publicou no Global Security Briefing do Oxford Research Group que “[...] the Trump White House and his administration is already putting far more emphasis on military thinking and options, there really is a risk that in the coming months the decision may be taken to undertake pre-emptive military action against North Korea’s warhead and missile production facilities. This is a highly unwelcome and potentially disastrous prospect but Trump has said that North Korea has to curb its ambitions”. Em tradução livre: “a Casa Branca de Trump e sua administração já estão dando muita ênfase no pensamento e nas opções militares, existe o risco de que, nos próximos meses, a decisão possa ser tomada para empreender ações militares preventivas contra as unidades de guerra e de mísseis da Coréia do Norte. Esta é uma perspectiva altamente desagradável e potencialmente desastrosa, mas Trump disse que a Coréia do Norte tem que conter suas ambições”.

12 A América Latina também buscou a neutralização do conflito na democracia: “Entre os anos de 1985 a 2004, a América Latina viu que treze presidentes deixaram o cargo prematuramente: Raúl Alfonsín (Argentina); Jean-Bertrand Aristide (Haiti); Joaquín Balaguer (República Dominicana); Abdalá Bucaram (Equador); Fernando Collor de Mello (Brasil); Raúl Cubas (Paraguai); Alberto Fujimori (Peru); Jamil Mahuad (Equador); Carlos Andrés Pérez (Venezuela); Fernando de la Rúa (Argentina); Gonzalo Sánchez de Lozada (Bolívia); Jorge Serrano (Guatemala); e Hernán Siles Zuazo (Bolívia). Este grupo sofreu a indignidade da remoção antecipada por meio de impeachment ou demissão forçada, às vezes sob circunstâncias de instabilidade que ameaçaram a própria democracia constitucional - como no caso de golpes militares. Enquanto os latino-americanos ainda apoiam amplamente a democracia, estão cada vez mais insatisfeitos com o desempenho de seus governos democráticos. É hora de considerar a mudança de modelos constitucionais que promovam o conflito ao invés de formas mais consensuais de fazer política” (VALENZUELA, 2004, p. 08).

13 São exemplos de adjetivação da democracia: a democracia parlamentar, a democracia multipartidária, a democracia federal, a democracia presidencialista, a democracia de baixa intensidade, a democracia bipartidista, a democracia de sufrágio limitado, a democracia de fachada etc. Todos esses são subtipos democráticos, ao mesmo tempo que cada um deles considera-se um tipo particular de democracia. Faz-se importante ressaltar que há subtipos que não são exemplos plenos da democracia, sendo considerados exemplos incompletos dela. Nesse sentido, deve-se prestar atenção que “os subtipos construídos desta maneira podem levar o estudioso a cair no estiramento conceitual, pois faz supor que os casos em discussão são de fato democracias. Se o caso que se está estudando não chega a ser plenamente democrático, o emprego desses subtipos como ferramenta de diferenciação conceitual pode não ser apropriado. Os analistas buscam, assim, conceitos que distingam graus de democracia além de identificar tipos de democracia” (COLLIER; LEVITSKY, 1998, p. 106-108).

14 Por exemplo, “para que o princípio democrático seja efetivo e real, não é necessário que os cidadãos votem mais vezes, mas sim devem as instituições responsáveis por sua representação e manifestação de vontade fazê-las realmente e não pelo fato de somar votos que lhes permitam chegar ao poder. Em caso contrário, desvirtua-se o princípio democrático e deixa-o vazio de conteúdo” (RAMIRO, 2015, p. 358).

15 “Há quatro possibilidades para analisar a troca recíproca dos conceitos e das circunstâncias: 1. O significado da palavra, bem como as circunstâncias permanecerem sincrônica e diacrônica constantes. 2. O significado da palavra permanece constante, mas as circunstâncias mudam, afastando-se do seu antigo significado. A realidade assim transformada deve ser novamente conceituada. 3. O significado da palavra muda, mas a realidade anteriormente apreendida por ele permanece constante. Portanto, a semântica deve encontrar uma nova forma de expressão, a fim de ajustar fielmente a esta nova realidade. 4. As circunstâncias e o significado das palavras desenvolvem-se separadamente, cada um por seu lado, de modo que a correspondência inicial não pode ser mantida por mais tempo. Somente através dos métodos da história conceitual é possível então reconstruir as realidades que costumavam corresponder com os conceitos” (KOSELLECK, 2004, p. 31).

Autor notes

* Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (PPGH/UPF). Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (PPGH/UPF). Possui MBA em Gestão Estratégica do Agronegócio pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Graduado em Ciências Econômicas pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Economista. Docente da Faculdade de Economia, Ciências Contábeis e Administração da Universidade de Passo Fundo (FEAC/UPF). E-mail: . Orcid ID: https://orcid.org/0000-0002-9290-4423

** Em estágio doutoral na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Portugal. Bolsista do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE) da Capes, n.º do processo 88881.131798/2016-01. Doutoranda e Mestra em Direito pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC). Pós-Graduada em Direito Público com ênfase em Direito Constitucional (ESVJ). Pós-Graduanda em Derechos Humanos y Estudios Críticos del Derecho pela Escuela Latinoamericana de Políticas Públicas (ELAP/CLACSO/Argentina). Investigadora do Grupo de Estudos em Direito da Globalização e Meio Ambiente da Universidade Federal de Santa Catarina (GPDP/UFSC). E-mail: . Orcid ID: https://orcid.org/0000-0002-4344-087X