Como aconteceu voluntárias brasileiras dão assistência a refugiados venezuelanos em Roraima?

Os ataques contra venezuelanos foram pequenos diante da grandeza da rede de voluntários criada por brasileiros em Roraima. Na fotografia está a antropóloga Graziela Camargo, que se dedica aos índios Warao no Projeto Los Niños (Foto: Yolanda Mêne/Amazônia Real)

Nayra Wladimila, especial para a Amazônia Real

Boa Vista (RR) – A cada vez que tentava dormir e não conseguia por causa do barulho das conversas em espanhol que vinham da rua e das músicas venezuelanos das caixinhas de som, a autônoma brasileira Cristina Almeida, 49 anos, pensava em voltar para sua casa no bairro Equatorial, na zona oeste de Boa Vista, capital de Roraima, fronteira com a Venezuela. Mas ela precisava passar, pelo menos, seis meses cuidando da residência de seu cunhado, que havia feito uma cirurgia.

O homem tinha medo de que seu imóvel, em uma rua paralela ao então recém-inaugurado abrigo para imigrantes Jardim Floresta, no bairro de mesmo nome, também na zona oeste da capital roraimense, fosse invadido pelos novos vizinhos, cada vez mais numerosos. Cristina mora na residência do cunhado com sua filha e seu neto. Ela, que tinha o hábito de ficar trancada na casa, a todo momento escutava baterem palmas na porta. Eram refugiados que se aglomeravam em pequenas barracas de lona e tábuas em um terreno baldio na frente da casa, que fica em uma esquina.

No lugar, eles cozinham em latões de tinta que ficam em cima de grades de ventiladores pela fala de um fogão. Estendem roupas na cerca de outro grande terreno, tomam banho usando baldes e mangueiras ligadas na torneira de uma pequena igreja, também naquele quarteirão. Voluntários oferecem aos refugiados refeições diárias e atendimentos médico gratuito e esporádico. No terreno, as árvores tornaram-se suportes para pendurar as redes. A todo momento, eles circulam a pé ou de bicicleta, na busca por emprego. A quantidade de pessoas é variável, mas já chegou a ser de trezentas pessoas vivendo no acampamento.

Os brasileiros que moram no entorno do terreno se incomodam com a grande movimentação. Alguns já chegaram a anunciar seus imóveis para venda, e a pedir a retirada do abrigo Jardim Floresta, para que o acampamento acabe por tabela. Mas ao ver que no meio dos refugiados havia crianças, principalmente de colo, Cristina reagiu de forma diferente: estendeu-lhes a mão.

Todos os dias, de manhã e no fim da tarde, sete das mulheres que vivem acampadas entram na casa do Jardim Floresta para preparar mingau para todas as crianças. Cristina também chegou a hospedar uma senhora com mais de 70 anos de idade, para que ela não dormisse ao relento. O seu neto passava o dia brincando com o neto da idosa. “Ela era muito tranquila. Eu até consegui uma passagem para ela retornar à Venezuela, porque ela estava sofrendo muito longe do seu marido, que também já tinha mais idade”, comentou.

Como aconteceu voluntárias brasileiras dão assistência a refugiados venezuelanos em Roraima?

Cristina Almeida (em pé) hospeda refugiados venezuelanos em sua casa (Foto: Yolanda Mêne/Amazônia Real)

Há dois meses, a autônoma aluga um quarto para uma pedagoga e uma bióloga venezuelanas, as jovens que primeiro bateram à sua porta em uma noite chuvosa, pedindo por um lugar para dormir. No dia seguinte, foram embora. Determinadas a não dormirem na rua nem em abrigos, elas conseguiram empregos na Universidade Federal de Roraima (UFRR) e semanas depois apareceram novamente, desta vez para alugar o quarto.

Com o restante dos imigrantes acampados, Cristina tem conversas relativamente frequentes, seja no seu portão, seja na sua varanda. O espanhol, que ela não compreendia, aos poucos vai sendo assimilado e ela já consegue “entender um bocado de coisas, mesmo quando eles pensam que não”.

Os rostos e nomes não são sempre os mesmos. Há os que chegam e se decepcionam com a vida no Brasil, regressando à terra natal; há os que conseguem vagas nos abrigos ou mesmo em empregos; e os que participam do processo de “interiorização”, que é quando refugiados são encaminhados para abrigos em outros Estados brasileiros para desinchar a população venezuelana em Roraima. Eles precisam estar vacinados, com documentos atualizados e preenchem um cadastro da Organização das Nações Unidas (ONU), registrando interesse no processo. Até o dia 25 de outubro, em torno de 2.782 imigrantes já haviam deixado Roraima, em 14 voos fretados pela Força Aérea Brasileira (FAB) para estados como Amazonas, Bahia e São Paulo.

A interiorização é uma das ações da Força-Tarefa Logística e Humanitária, também chamada de Operação Acolhida, criada por meio de Medida Provisória do Governo Federal, em fevereiro deste ano. Essa operação envia recursos e militares das Forças Armadas Brasileiras para Roraima, para construírem abrigos e encaminharem refugiados para outros Estados desde abril de 2018.

O grande fluxo migratório traz de vizinhos simpáticos a violentos. É comum Cristina presenciar desde inocentes jogos de futebol no meio da pista, até assaltos e brigas com facadas. As viaturas policiais passam diariamente, revistando vários venezuelanos por causa da proximidade com o abrigo. “É tudo misturado: tem gente boa que veio para sobreviver, e tem outros que vieram de carona só para bagunçar”, opinou ela.

“Por isso, a população brasileira fica revoltada com os venezuelanos. Aquilo [o ataque de brasileiros a venezuelanos como retaliação a uma agressão sofrida por um brasileiro] em Pacaraima não foi certo e não adiantou de nada. Mas os inocentes pagam o preço dos que não prestam. Aqui já vi uma mãe chegar com seis crianças para pegar mingau e abrir um sorriso triste, porque sente vergonha por esses que vêm só por maldade”, comentou.

 As crianças, por outro lado, abrem sorrisos largos ao verem o alimento. “Acho que não têm ideia do que está acontecendo”, disse ela.

A situação chamou a atenção da ONG internacional cristã Visão Mundial, conhecida por seus trabalhos missionários e por apoiar menores em situação de emergência, e que está desde 1975 no Brasil. Juntamente com Cristina e as inquilinas, a Visão Mundial vai oferecer mais suporte às refeições dos acampados.

Enquanto aguardava o apoio da organização, que só começaria dali a uma semana, Cristina sentava-se em uma cadeira de plástico em sua varanda. Ao seu lado, algumas outras mesas e cadeiras empilhavam-se. Do lado de fora, bem perto de seu portão, vários venezuelanos conversavam, alguns com bebês nos braços. Na rua, garotos jogavam bola e várias outras pessoas tentavam seguir a vida nas suas apertadas barracas de lona, que encharcam nas noites chuvosas.

“Acho que tudo isso que eles estão passando é uma fase. Enquanto muita gente na cidade sente raiva disso, para mim essa situação foi um despertar. Eu ficava isolada em casa, mas pensei: tem crianças e grávidas aqui. Se estou neste lugar com estas pessoas, o que eu puder fazer, tenho que fazer agora, para mais tarde não me perguntar por que deixei passar essa fase da minha vida”, declarou.

“Somos Migrantes”: conectando vozes

Como aconteceu voluntárias brasileiras dão assistência a refugiados venezuelanos em Roraima?

A jornalista Ana Montel promoveu no site “Somos Migrantes” campanhas de arrecadação de roupas para os refugiados (Foto: Yolanda Mêne/Amazônia Real)

O que motivou Ana Montel, 22 anos, e seu colega Eduardo Halqs a criarem o site “Somos Migrantes” foi o entendimento de que eles e várias outras pessoas que hoje vivem no Estado de Roraima não nasceram ali. Não é só isso: os dois cursam o 6º semestre de “Comunicação Social – Jornalismo” na Universidade Federal de Roraima (UFRR) e não veem com bons olhos a abordagem da grande imprensa sobre os refugiados, retratando-os de forma sensacionalista.

“Tem muitos que realmente roubam, mas a maioria vem com a vontade de construir uma vida melhor e fugir da fome”, apontou Ana. “Há alguns que vêm na nossa sala e falam que ficam revoltados com os conterrâneos que cometem crimes; outros dizem que preferem morrer de fome na Venezuela do que serem atacados no Brasil. Fico até emocionada, pois é muito forte escutar um relato desses. É muito fácil para o brasileiro adotar o lado da xenofobia, mas é importante escutar a versão dos estrangeiros também”, disse Ana.

Ela, que pretende seguir carreira na mídia alternativa, viu na ideia da página na internet a oportunidade de começar a dar voz a pessoas muitas vezes estereotipadas, gerando informações mais plurais. Eduardo, por sua vez, cuida das redes sociais (Facebook e Instagram) do projeto, divulgando as matérias e as fotos. Ana é a assessora, produzindo matérias e republicando reportagens e estudos de outras fontes. A revisão textual fica por conta da estudante Beatriz Teófilo, do curso de Letras da UFRR. O site também disponibiliza endereços e links de serviço, como do Ministério Público Federal e da Polícia Federal; e publica eventos e pesquisas.

A dupla Ana e Eduardo já promoveu campanhas de arrecadação de roupas, e um vídeo sobre os refugiados que trabalham nas ruas de Boa Vista. Atualmente, planeja um documentário chamado de “Crônicas de um imigrante”, no qual os próprios venezuelanos conduzirão a câmera e contarão suas histórias, numa espécie de diário. “Vamos só ensinar o manuseio da câmera e acompanhar seu percurso. O roteiro e a execução vão ficar a cargo deles”, disse a estudante.

Sem ganharem nenhuma bolsa nem patrocínio pelo “Somos Migrantes”, Ana e Eduardo têm dificuldade em atrair mais colaboradores para esse trabalho social. Apesar disso, eles já venceram o prêmio de projetos estudantis de Comunicação Social “Expocom”, na edição nacional do congresso acadêmico Intercom, da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. Eles também são “pagos” diariamente com a gratidão dos próprios estrangeiros que visitam a sala que lhes foi cedida em frente ao Instituto de Antropologia da universidade federal.

“Nós recebemos currículos deles, para indicá-los a vagas, além de oferecermos informações. Às vezes, eles voltam aqui e falam: ‘Poxa, muito obrigado! Eu soube por aqui de uma vaga e consegui o emprego’. É muito gratificante sabermos que a situação não está fácil e termos esta forma de ajudar o próximo”, comenta Ana.

Casa de los Niños: educação além do conhecimento

Como aconteceu voluntárias brasileiras dão assistência a refugiados venezuelanos em Roraima?

A antropóloga Graziela Camargo se dedicou a causa dos índios Warao em Roraima no Projeto Los Niños (Foto: Yolanda Mêne/Amazônia Real)

Natural de Vitória (ES), a coordenadora pedagógica e antropóloga Graziela Camargo, 37, mudou-se com seu marido para Boa Vista, a fim de trabalhar com a educação do povo Yanomami. Há mais de dez anos atuando com o tema, ela se surpreendeu ao ver que no Estado com a maior população indígena do Brasil há vários discursos de repulsa a essas etnias. “Muitas pessoas não procuram se aprofundar na questão das terras e da cultura indígena, tendo dificuldade de ver o outro apenas como diferente deles”, lamentou.

Quando o êxodo venezuelano em Roraima começou, Graziela viu nessa multidão um grupo duplamente discriminado: os indígenas venezuelanos Warao, que há anos já eram vistos pelas bandas de Roraima e do Amazonas em situação de mendicância, sofrendo retaliações de todo tipo. Quando a quantidade de refugiados cresceu, os Warao chegaram a frequentar as escolas públicas de Roraima, mas em duas semanas desistiram, devido às dificuldades de adaptação – diferentemente dos demais venezuelanos, que seguem estudando.

Em agosto de 2017, conversando com a amiga Jaqueline Rocha, controladora de voo na Força Aérea Brasileira em Boa Vista, Graziela e a amiga decidiram fazer alguma coisa pelos Warao. Os indígenas dormiam em redes, em sua maioria do lado de fora do atual abrigo do Pintolândia, na zona oeste de Boa Vista, onde também residiam outros refugiados. A ONG internacional Fraternidade Sem Fronteiras era praticamente a única entidade que os atendia. “Perguntamos se eles precisavam de ajuda com as crianças, e agradeceram demais, quando começamos a frequentar o abrigo”, lembrou.

Assim, as duas passaram a usar seus dias de folga para comprar mesas e cadeiras, arrecadar doações de compensados e convidar as crianças e adolescentes para desenharem em papeis. O marido de Graziela, que é professor na UFRR convidou vários de seus alunos para apoiarem a ideia, e davam aulas para as crianças. Mais universitários foram aparecendo, trazidos também por amigos de Graziela e Jaqueline.

Mas para conseguirem trabalhar com os venezuelanos, primeiro foi necessário compreender seu estilo de vida. A principal barreira entre o grupo e os brasileiros é que as crianças de até seis anos de idade só falam o idioma Warao; depois dessa idade é que aprendem o espanhol e agora ainda precisam dominar uma terceira língua, o português.

“A maioria nunca frequentou uma escola brasileira. Na Venezuela, o ensino deles era mais contextualizado, com material didático específico e escolas bilíngues. Ainda assim, o analfabetismo entre eles é alto, em torno de 80%. Então, há crianças de dez anos que não sabem segurar um lápis. Enquanto que na nossa cultura ocidental as pessoas já nascem sabendo que frequentarão a escola e que crescerão na vida por meio da educação, o que os Warao julgam necessário para sobreviver vem de outros meios de conhecimento. [Então] Passamos a fazer reuniões semanais com os pais para mostrar a eles o quanto a escola é importante na nossa sociedade. Já tivemos resultados: não se vê mais tantos indígenas nos semáforos em Boa Vista”, argumentou.

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A coordenadora pedagógica e antropóloga Graziela Camargo (Foto: Yolanda Mêne/Amazônia Real)

Graziela e Jaqueline conheceram o trabalho da Dra. Gabriela Croes, antropóloga venezuelana que desenvolveu uma cartilha chamada “Guia Pedagógico dos Warao”. O material foi tão enriquecedor para o trabalho educacional que elas realizam, que convidaram a autora para seminários na UFRR e no próprio abrigo do Pintolândia, para falar com as pessoas da etnia. Uma aproximação deles com os indígenas brasileiros também aconteceu.

Assim, as atividades com os menores tornou-se ainda mais lúdica: por meio da oralidade, de brincadeiras, de brinquedos, jogos, filmes e desenhos, aos poucos eles foram aprendendo a ler, a escrever e a conhecer aspectos de sua própria cultura e da cultura brasileira também.

Agora, dois voluntários, entre os próprios Warao, ensinam seu idioma, seus contos populares e seu artesanato. Outro voluntário é de uma etnia, também presente no abrigo, mas em quantidade bem menor: a Eñepa, também conhecida por Panare, que habita o sul do rio Orinoco no Estado venezuelano do Amazonas. Os três já eram graduados em “Educação Bilíngue” em seu país, e também ensinam espanhol aos jovens imigrantes que estão no Brasil.

Duas vezes por semana eles dão aulas. Nos outros três dias, os voluntários brasileiros ensinam português e linguagens artísticas como música. Quinzenalmente, há aulas de pintura facial. Um sábado por mês há o apoio de alunos de “Pedagogia” da UFRR. Alguns dos indígenas adultos recebem capacitação para serem professores e para aperfeiçoarem seu artesanato.

Graziela e Jaqueline já conseguiram organizar passeios para o Zoológico do 7º Batalhão de Infantaria da Selva, para o Parque Anauá, para as praias do Rio Branco e para o cinema do Sesc Mecejana, onde foi exibido um filme em espanhol. “Pelo menos duas vezes por mês levamos toda a criançada a lugares como esses. É divertido. No passeio do Sesc, levamos pipoca”, acrescentou Graziela.

Com as aulas de artesanato, elas objetivam garantir uma renda às mulheres das tribos, que vendem as artes em praças e parques. Com as demais turmas, pretendem conseguir vagas nas escolas, mas lutam para que o Ministério Público garanta uma educação diferenciada que valorize a cultura deles, de maneira semelhante ao que ocorre com os indígenas brasileiros.

O empenho também é para manter a coesão dos povos. Em seu habitat natural, na bacia do rio Orinoco, os Warao viviam da caça, da pesca e das artes. Eram rodeados por rios e florestas e dormiam em palafitas. As crianças e os adolescentes tinham liberdade de locomoção. O seu nomadismo começou bem antes da crise que assola a Venezuela, o seu país, mas ainda assim é bem difícil, especialmente para os mais novos, com dificuldades de se adequar a um país com idioma e cultura completamente diferentes dos seus. Eles também têm dificuldades para viver numa rotina, trancados dentro de um abrigo, vivendo em redes e barracas muito próximas umas das outras, em um bairro com o tráfico de drogas bem presente.

“Os outros refugiados, nos outros abrigos, passam um tempo lá e podem conseguir empregos e saírem. Mas os indígenas não têm a mesma perspectiva: eles não dominam as profissões da nossa sociedade e lidam com a barreira do idioma. Não sabem quanto tempo vão ficar aqui, que tipo de emprego podem conseguir para alugar uma casa. Além disso, comunidades inteiras sofrem com a falta de comida e de medicamentos na Venezuela, que se já são raros em cidades, imagine em tribos, e chegam aqui desnutridas”, explicou a coordenadora pedagógica.

“Há alguns adolescentes caindo nas drogas e nos falando que é melhor estar ‘no mundo da lua’ do que aqui, até porque eles não são imunes aos mesmos problemas que a gente [sofre], como autoestima baixa e depressão. Queremos levá-los a assistentes sociais e psicólogas, para entendermos como tirá-los dessa, pois esse vício é fruto principalmente dessa ociosidade que estão vivendo”, lamentou Graziela.

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Crianças Warao atendidas pelo projeto Casa Los Niños (Foto: Yolanda Mêne/Amazônia Real)

Depois que a Operação Acolhida assumiu a responsabilidade pelos abrigos, em abril deste ano, a segurança do espaço foi reforçada e o controle sobre quem vive lá dentro também. Antes, qualquer refugiado poderia morar lá, o que dificultava a adaptação dos Warao às aulas, uma vez que, constantemente, entravam e saíam novos “alunos”. Por outro lado, tornou-se um desafio conscientizar também os integrantes do poder público a respeito das diferenças da cultura dos indígenas.

“Algumas pessoas que vieram trabalhar aqui se chocaram por eles comerem com as mãos, por exemplo. Explicamos que não é errado esse hábito, que ele é praticado até por ricos em outros países. Mas dissemos que devemos nos atentar para que eles lavem as mãos antes de comer, para evitar a disseminação de doenças”, disse a pedagoga.

Hoje, quatro professores foram contratados pela Unicef para trabalhar com os indígenas. Graziela também comemora o crescimento do seu projeto, que já conta com o nome “Casa de los Niños” e vinculação à ONG de palhaços Pirilampos, da qual Graziela é voluntária e realiza atividades lúdicas no abrigo em alguns finais de semana. Tal atividade permite que o projeto receba doações de patrocinadores de empresas e de amigos.

Recentemente, a dupla conseguiu uma parceria com a ONG internacional Visão Mundial, permitindo que elas custeiem o trabalho dos professores e melhorem a infraestrutura do espaço dentro do abrigo (como adquirindo lousas, ar – condicionado e televisão) para que atendam adequadamente cerca de 250 crianças e adolescentes indígenas atuais.

“Com esta parceria, agora temos recursos, pois antes todo o trabalho era voluntário, e até mesmo pagávamos para estar aqui. Eu moro bem longe daqui, na zona leste, venho para cá diariamente e gasto gasolina. Mas é muito gratificante fazer parte do projeto ‘Casa de los Niños’ e trabalhar com a educação de jovens, pois esses aspectos sociais sempre me encantaram. Eles têm toda uma vida pela frente, e a educação realmente muda a vida das pessoas. Eu vim para cá com o coração aberto”, declarou Graziela.

A respeito da discriminação que os venezuelanos sofrem, o projeto tem pensado em maneiras de tentar diminui-la. Mas a antropóloga pensa que é um buraco mais fundo, derivado da própria visão de mundo de cada um e também do descaso do poder público perante a população brasileira, cuja parcela, ao ver os serviços superlotado, atribuiu a culpa aos recém-chegados. O fato de as ONGs e os auxílios monetários terem demorado para aparecer contribuiu. Porém, Graziela ressaltou que a quantidade de venezuelanos dentro do Brasil ainda é bem pequena se comparada com outros países latinos e com os europeus.

“A nacionalidade é uma questão meramente territorial. Todos somos humanos, com direito à saúde e educação. Eu sempre tento trazer, nas minhas programações, a minha filha de seis anos, para que ela cresça com mais empatia pelas outras pessoas”, declarou Graziela Camargo.

“Mexendo a Panela” e unindo uma causa comum

Como aconteceu voluntárias brasileiras dão assistência a refugiados venezuelanos em Roraima?

Acampamentos do migrantes no bairro Jardim Floresta, em Boa Vista (Foto: Yolanda Mêne/Amazônia Real)

Já eram 17h quando Cícera Bezerra, 26 anos, conhecida como Cissa, abriu uma marmita para começar a almoçar. Ela, que cursava o “Técnico em Administração” à noite, no Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), fica das 8h às 17h30 trabalhando na Igreja Nossa Senhora da Consolata, no bairro São Vicente, na zona sul, como zeladora. Ela também ajuda a preparar algumas das 500 marmitas distribuídas ao meio dia, de segunda a sábado, aos venezuelanos que moram nas ruas. A comida é doada a eles no galpão da Rodoviária Internacional de Boa Vista.

Há dois anos, o padre Revislande dos Santos Araújo, 48 anos, e os fiéis se sensibilizaram com a quantidade de brasileiros que viviam em estado de miséria, próximos à Igreja. Então, pediram nas missas doações de “pratos feitos”. Começaram a distribuir vinte refeições durante o almoço e quinze à noite para os imigrantes venezuelanos. Porém, os refugiados vindos da Venezuela se tornaram numerosos e as quentinhas já não eram mais suficientes. O padre então perguntou à Cissa se era possível preparar refeições, ainda que fossem feitas apenas com macarrão e salsicha em “uma panelinha”.

O padre Revislande reforçou a divulgação dentro da Igreja e entre seus conhecidos para levantar mais alimentos, um fogão maior, mais panelas e também mais “braços” para esse trabalho. Conseguiram cozinhar 400 refeições diárias, e passaram a mil a partir de dezembro de 2017, quando a ONG Fraternidade Sem Fronteiras se uniu ao grupo. Outras igrejas, ao verem que o projeto “Mexendo a Panela” ajudava qualquer pessoa em situação de rua, também ofereceram apoio e vieram voluntários evangélicas e de centros espíritas. Maçons, empresários, entidades como o Rotary Club de Boa Vista e pessoas comuns também nunca mais deixaram de confiar no movimento. “Esses grupos nunca foram muito unidos e agora estão todos abraçando a causa. É uma coisa bonita, mas que nunca pensei que fosse ver”, admirou-se.

Com a parceria da Operação Acolhida, a partir de abril deste ano, eles chegaram a duas mil refeições diárias, no café da manhã, almoço e jantar. Os voluntários se revezam na distribuição, para que não fique cansativo. Porém, a quantidade de refeições entregues pelo “Mexendo a Panela” caiu para 500 após a inauguração do abrigo São Vicente, no mesmo bairro, que recolheu vários venezuelanos que estavam nas ruas. Foi quando o grupo se direcionou para os imigrantes que vivem próximo ao galpão da rodoviária.

Como aconteceu voluntárias brasileiras dão assistência a refugiados venezuelanos em Roraima?

A cozinha do projeto Mexendo a Panela (Foto: Yolanda Mêne/Amazônia Real)

Não há um número concreto de quantos venezuelanos estão morando atualmente em Roraima. No levantamento de janeiro, a Prefeitura de Boa Vista estimou em 40 mil pessoas. Em uma pesquisa realizada em junho, o município contou pelo menos 25 mil migrantes. Segundo a Operação Acolhida, no dia 5 de novembro haviam 5.553 pessoas vivendo nos 13 abrigos do Estado e de 1.000 a 2.000 pessoas vivendo nas ruas da capital.

Conforme a organização dos movimentos de apoio, outros 6.413 migrantes retornaram à Venezuela desde o mês de agosto, por meio do programa “Volta à Pátria”, no qual o governo do presidente Nicolás Maduro freta ônibus para levá-los ao país de origem. O programa oferece atendimento médico e social na fronteira com o Brasil e encaixa os venezuelanos em programas sociais nas cidades em que eles viviam na Venezuela. Mas alguns apenas aproveitaram a passagem gratuita para levar mantimentos aos familiares, regressando a Roraima poucos dias depois.

Devido ao crescimento, tanto de infraestrutura quanto de pessoas, o projeto “ganhou” uma cozinha própria, um depósito e um pequeno escritório, em salas cedidas pela Igreja Consolata. A formalização do projeto também motivou a necessidade de criar uma conta corrente para receber as ajudas financeiras e prestar contas diante dos doadores de outros estados.

Além dos alimentos, são arrecadados pelo projeto itens como fraldas, remédios e absorventes. “Mas as doações não são fixas. Hoje é um dia de armário cheio, mas às vezes não tem quase nada”, comentou Cissa, ao mostrar o depósito ao lado da cozinha. “Chegamos e nem sempre tem o que cozinhar para o almoço. Pensamos: ‘Meu Deus, e agora?’, mas aí meia hora depois aparece alguém em um carro perguntando onde pode entregar doação. Sempre tem alguém para ajudar”, disse.

Na parede do escritório, nomes escritos em giz mostram quem são as pessoas que já apoiaram de alguma forma: de doadores pontuais aos próprios voluntários. Um deles é o nome de Áurea Cruz, fiel da Igreja Consolata e participante do “Mexendo a Panela” desde que o padre Revislande reforçou a divulgação.

Atualmente, como uma das pessoas à frente do projeto, ela comemora as suas conquistas recentes: a possibilidade de oferecer cestas básicas para imigrantes que vivem de aluguel, mas que ainda são de baixa renda. Áurea também promoveu a retomada da parceria com a Operação Acolhida, para que o grupo entregue 1.400 refeições diárias para os abrigados no São Vicente e 600 para moradores de rua. Também conseguiu a contratação de cursos do Senac Roraima para ensinar inicialmente “português para estrangeiros”, “boas práticas na manipulação de alimentos”, “leis trabalhistas brasileiras” e “qualidade no atendimento ao cliente”. Os voluntários também já haviam montado uma sala de costura para dar aulas de atividades manuais às segundas-feiras.

“A gente não vai ter condições de alimentar todo esse pessoal por anos a fio, principalmente os venezuelanos. Queremos criar condições para que eles sobrevivam por conta própria, seja para o caso de um dia quererem retornar para a sua terra, ou serem interiorizados para o restante do Brasil. Nos preocupamos com as pessoas que são interiorizadas, porque elas ficam sob os cuidados do Estado até arranjarem um emprego. Mas e se [elas] forem demitidas depois dos 45 dias do período de experiência? Elas precisam saber caminhar com as próprias pernas!”, analisou Áurea.

A preocupação com os venezuelanos se dá porque mais do que entregar refeições, os voluntários absorvem as histórias de vida de quem ajudam. Áurea chega a passar noites dando conselhos e buscando assistência para pessoas que chegaram ao Brasil atrás de parentes e depois não os conseguirem encontrar, podem até mesmo sofrer abusos por parte de policiais.

Apesar de não achar que ninguém é mais nobre do que o outro, apenas por realizar trabalho voluntário, Áurea acredita que a atividade tem a capacidade de melhorar a vida também de quem estende a mão ao próximo. “A gente passa a manhã fazendo comida, o resto do dia tentando ajudar e recebe de volta gratidão, amor, respeito. Você já imaginou olhar para uma pessoa necessitada e enxergar, nos olhos dela, que ela depositou em você toda a esperança de conseguir ter um prato de comida naquele dia? Que o abraço que ela vai te dar é muito mais valioso do que uma nota de dinheiro, porque é o abraço de alguém que está desamparado, longe da família, sem casa?”, comentou Áurea.

“Há uns dias atrás, na missa, recebi o abraço de uma das voluntárias do projeto e ela me confessou: ‘há um ano eu não tomo remédio para depressão’. Há um ano ela está na nossa cozinha. Tomava remédio controlado. Então eu tenho muito orgulho do nosso grupo, pois aqui nós viemos com a intenção de curar a dor do outro, e também estamos curando a nossa [dor]”, contou.

Cissa é uma das voluntárias que tiveram a sensibilidade aguçada desde que iniciou o “Mexendo a Panela”. No Natal passado, ela participou da ceia que o ‘Mexendo a Panela’ realizou para mais de 400 pessoas, ocasião em que a maioria dos voluntários chorou ao receber sorrisos de gratidão. “Eu nunca pensei que ia viver um momento como aquele, com tanta gente reunida! A cada dia é um novo aprendizado”, disse ela.

Como aconteceu voluntárias brasileiras dão assistência a refugiados venezuelanos em Roraima?

Cícera Bezerra, a Cissa, faz marmitas para os refugiados (Foto: Yolanda Mêne/Amazônia Real)

Mãe de um menino, Cissa também já chorou ao ver as crianças desnutridas receberem as marmitas, e ao chegar na igreja ao encontrar algumas dormindo em cima de folhas de papelão, após noites chuvosas. A situação que mais lhe comoveu foi um garotinho com câncer, que veio para o Brasil com a mãe, em busca de tratamento. Ao pôr os olhos nele, ela viu alguém que era como seu filho. Indicou a família para conseguir uma vaga no abrigo São Vicente e hoje o menino é atendido pelo SUS. “Em um domingo recente, estive na Praça das Águas e os encontrei catando latinhas. Cumprimentei-os e eles me agradeceram muito por hoje terem um lugar para dormir e o que comer”, emocionou-se Cissa ao relatar o fato.

“Às vezes a gente enche um prato de comida e joga metade fora, reclama da vida, enquanto tem tanta gente longe da família, com parentes passando fome em outro país. Há os que os ridicularizam [essas pessoas], baseados nas notícias negativas. Mas só sentindo na pele [o que eles sofrem], ou então procurando conhecer as pessoas que os ajudam, como nós, para entender o que eles estão vivendo”, disse Cissa Bezerra ao concluir nossa conversa.

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Essas e tantas outras experiências de solidariedade no norte do país, estão mostrando como a chegada dos venezuelanos mudou a vida de muitas pessoas na Amazônia. Notícias veiculadas pelos meios de comunicação, muitas vezes, apresentam os imigrantes como se fossem geradores de problemas para o Brasil; mas, como se pode constatar nos relatos das pessoas entrevistadas, há brasileiros que estão mudando o modo de ser e de viver, depois de se envolverem com atos solidários para dar apoio a eles para terem o mínimo para sobreviver à condição de refugiados. A importância de se conhecer o outro lado dos fatos, de acordo com as palavras dos próprios protagonistas voluntários que se envolveram nos atos de apoio aos venezuelanos mostra como foi fundamental transcender a discriminação e estender a mão para ajudar ao próximo: todos estão ganhando, não importa se sejam doadores ou quem esteja doando ou recebendo a doação. 

Com a reportagem da jornalista Nayra Wladimila, a agência Amazônia Real termina a série Migrante cidadão, que começou a ser publicada em janeiro de 2018. As 12 reportagens produzidas em Pacaraima e Boa Vista, em Roraima, Manaus, no Amazonas, Rio Branco, no Acre, Belém e Santarém, no Pará, trouxeram um novo olhar sobre os migrantes e refugiados venezuelanos, passando por temas duros como a xenofobia, o preconceito institucional, as ameaças que as mulheres, crianças e adolescentes, indígenas e pessoas LGBTs enfrentam nos deslocamentos de seu país para o Brasil. Participaram da série além de Nayra, os jornalistas Eliane Rocha, Vandré Fonseca, Freud Antunes e Catarina Barbosa, os fotógrafos Alberto César Araújo, Odair Leal e Yolanda Mêne, além de Elvira França, Elaíze Farias e Kátia Brasil.

Acompanhe a série:

Migrante cidadão: a dinâmica dos deslocamentos dos índios Warao na Amazônia  

Migrante cidadão: com artesanatos, índios Warao buscam sobrevivência digna em Roraima

Migrante cidadão: xenofobia entre estrangeiros pode ser a causa de ataques em Roraima

Migrante cidadão: índios Warao perdem abrigo de triagem em Manaus

Migrante cidadão: senegalês transforma a casa em abrigo humanitário no Acre

Migrante cidadão: a sobrevivência dos Warao em Belém e Santarém 

Migrante cidadão: violência expõe a xenofobia em Roraima

Migrante cidadão: ONU alerta para violações contra mulheres e LGBTs em Roraima

Migrante cidadão: xenofobia entre estrangeiros pode ser a causa de ataques em Roraima

Migrante cidadão: “prefiro morrer de fome na Venezuela, a me matarem aqui”, diz refugiado atacado em Roraima

Migrante cidadão: crianças vítimas de ataque em Pacaraima recebem apoio de brasileiros

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Como aconteceu voluntários brasileiros dão assistência a refugiados venezuelanos em Roraima?

Quando começou a aumentar o fluxo de venezuelanos no estado, no final de 2015, elas decidiram que era hora de voltar sua solidariedade para essas pessoas, e iniciaram o movimento “SOS Hermanos”. Atualmente, as doações são entregues duas ou três vezes por semana na praça Simon Bolívar.

Qual fato originou a reportagem voluntárias brasileiras na assistência a refugiados venezuelanos em Roraima?

Na cidade de Boa Vista, capital do estado de Roraima que abriga milhares de venezuelanos forçados a deixar seu país em busca de proteção, duas brasileiras decidiram fazer a diferença na vida de quem está vivendo em condições extrema vulnerabilidade.

Porque em Roraima ocorre tensões com os refugiados venezuelanos?

Os venezuelanos que buscam refúgio em Roraima fogem, principalmente, da fome. Mas não é só isso, eles também querem escapar da severa escassez de remédios, da instabilidade política e de uma inflação galopante de 700% na Venezuela, que corrói a moeda e faz com que cada vez mais pessoas busquem comida no lixo.

Qual foi o acontecimento voluntárias brasileiras?

Resposta: A chegada de milhares de venezuelanos ao Brasil. 2. Ocorreu em Boa Vista.