Quais foram os continentes envolvidos diretamente no tráfico de escravos no Atlântico?

A escravidão na África e a escravidão no atlântico

4. O fim do comércio externo e a expansão da escravidão na África

O comércio de escravos foi uma atividade econômica rentável e bem vista por praticamente todas as sociedades atlânticas até finais do século XVIII. Em 1780, a Pensilvânia aprovou leis que previam o fim gradual do comércio de escravos. Três anos mais tarde, Massachusetts declarou a escravidão ilegal. Em 1794, a França aboliu a escravidão em todos os seus territórios, decisão revogada mais tarde por Napoleão Bonaparte, em 1802. A partir de 1807, a Grã-Bretanha começou a tomar providências para a proibição do comércio de seres humanos, uma batalha que seria travada por décadas. Especialmente no Atlântico sul, o comércio de escravos permaneceu ativo até meados do século XIX e os negociantes envolvidos com o trato continuavam a ser vistos como importantes membros da sociedade. A escolha pelo uso da expressão “comércio de escravos”, até este momento, procura refletir seu caráter legal em regiões como Brasil e Angola. Somente a partir da promulgação da Lei Eusébio de Queirós, em 1850, os comerciantes operando nas rotas do Atlântico sul passaram efetivamente a ser tratados como piratas e o comércio começou a ser visto como tráfico.

Para o continente africano a proibição do comércio de escravos não teve a consequência que muitas pessoas imaginam. O fim do comércio legal de escravos no Mundo Atlântico não representou sua extinção na África, muito menos o enfraquecimento da instituição da escravidão. Embora o tráfico externo fosse combatido, principalmente pela Inglaterra, o comércio de escravos interno não sofreu alteração. O que mudou foi a quantidade de escravos que saíam dos polos exportadores no Atlântico e que agora se acumulavam em território africano. Esse enorme contingente de escravos ajudou a transformar mais uma vez a escravidão em várias regiões africanas. Eles passaram a ser utilizados localmente para a produção das mercadorias consideradas “legais” pelos mercados atlânticos (marfim, amendoim, açúcar, cacau, borracha, óleo de dendê, cera, etc.), que esses africanos deviam passar a produzir e comercializar, de acordo com as novas ambições coloniais europeias. 

No início do século XIX, o tráfico de escravos tinha se tornado uma gigantesca operação que gerou a migração forçada de um número de pessoas sem precedentes, chegando a envolver regiões anteriormente sem grande participação no mercado atlântico, como no caso de Moçambique. Internamente, o comércio de escravos e os mecanismos para a sua fabricação também haviam evoluído, assim como a utilização de mão de obra escrava para a produção interna, tornando a dimensão produtiva da escravidão na África mais importante que nunca (LOVEJOY, 2011, p. 135).

Na região da savana setentrional africana, o século XIX foi um período de violenta convulsão social onde uma série de guerras santas (jihads) transformou a maior parte da região a partir da primeira década do século. Esses jihads ocasionaram a escravização de milhões de pessoas, o que tornou mais intensiva a utilização produtiva de escravos na região, consolidando mais tarde o que Paul Lovejoy identifica como um “modo de produção escravista”. (LOVEJOY, 2011, p. 185).

O modo de produção escravista

A transformação da escravidão de característica marginal da sociedade para instituição fundamental produtiva resultou na consolidação de um modo de produção baseado na escravidão (...). Um “modo de produção escravista” existia quando a estrutura social e econômica de uma determinada sociedade incluía um sistema integrado de escravização, tráfico de escravos e utilização interna de cativo. (LOVEJOY, 2011, p. xviii).

Em uma de suas mais conhecidas obras, Economic Growth and the Ending of the Transatlantic Slave Trade (1987), David Eltis discorda de diversas partes da tese da “transformação” de Paul Lovejoy, em especial quanto à situação da escravidão e comércio internos após a proibição do tráfico atlântico de escravos.  De acordo com ele:

(...) devido ao declínio no preço de todos os escravos, parece claro que embora a demanda doméstica por escravos tenha crescido, não cresceu o suficiente para compensar o declínio da demanda transatlântica. Como uma consequência, o número de escravos negociados assim como o preço desses escravos decresceu durante o século [XIX] (...) portanto, a supressão deve ter significado alguma redução da escravização na África. (ELTIS, 1987, p. 227).

Essa análise de Eltis, sobre o declínio da escravidão na África com o avançar do século XIX, baseia-se principalmente no estudo dos preços de escravos durante o período. De fato, houve uma redução nos preços dos escravos, entre 1790 e 1820, em diversas regiões africanas e essa tendência pode ser verificada ao longo do século, mas isso não significa, necessariamente, que a instituição da escravidão tenha se enfraquecido nas sociedades africanas. De acordo com Lovejoy, durante todo o século XIX a instituição da escravidão não somente estava se expandindo por todo o continente, mas também a produção de escravos havia alcançado uma escala inédita (LOVEJOY, 1989, p. 390).
 

A abolição do tráfico atlântico de escravos e a difusão da escravidão na África

A dinâmica da escravidão no século XIX envolvia a interação entre as forças da abolição e a difusão da escravidão na África. Por um lado, a capacidade de escravizar as pessoas estava no seu auge, e a utilização interna de escravos era muito intensa. Por outro lado, os abolicionistas exerciam uma pressão cada vez maior sobre as sociedades africanas, levando a uma série de conflitos que estavam intimamente conectados com a imposição do colonialismo. Essas duas forças dinâmicas, uma interna e outra externa, formaram a estrutura para a completa transformação da escravidão no contexto africano. Ironicamente, esta transformação foi alcançada precisamente no momento da história em que a abolição do tráfico se tornava inevitável (LOVEJOY, 2011, p. 136-137).

Assim, na primeira metade do século XIX, mesmo com a proibição do comércio de escravos por nações como Inglaterra e Estados Unidos (ambos em 1808) e França (1818) e a restrição do trato por outros importantes comerciantes como Portugal – que a partir de 1810 começou a restringir gradativamente (e morosamente) o tráfico –, o comércio de escravos continuou em plena atividade, tendo apresentado inclusive crescimento em algumas regiões. Como atesta Lovejoy:

A luta contra o tráfico de escravos, a mudança para as mercadorias “legais” e a consolidação dos postos avançados europeus em Serra Leoa, na Costa do Ouro, em Lagos, no delta do Niger e em Fernando Pó eram elementos da mudança da exportação de escravos para a exportação de outras mercadorias, mas essa transição não levou a diminuição do tráfico de escravos e da escravidão na zona costeira. (LOVEJOY, 2011 p. 161).

Segundo os dados fornecidos pelo Trans-Atlantic Slave Trade Database, o porto de Gallinhas, na região de Serra Leoa, exportou ao menos 37.918 escravos entre 1801 e 1850. Este mesmo porto tinha sido responsável pela exportação de 1.690 seres humanos, entre 1751 e 1800.  Não muito distante dali, às margens do Rio Pongo, onde na segunda metade do século XVIII registrou-se a venda de 716 pessoas, 50 anos mais tarde esses números totalizavam 16.964 escravos.

No Atlântico sul, os já surpreendentes números do comércio de escravos de finais do século XVIII se tornariam ainda maiores na primeira metade do século XIX. Como a vigilância inglesa sobre o tráfico ainda não estava direcionada às negociações que aconteciam a sul do Equador – em 1815 ingleses e portugueses assinaram um acordo para manter o tráfico restrito ao Atlântico sul – as redes comerciais na África Centro-Ocidental expandiam os volumes exportados. Embora em algumas regiões os números demonstrem uma queda na exportação, existe um crescimento significativo em centros exportadores como Luanda e Benguela e portos como Ambriz e Cabinda:

Tabela 1: Aumento nas exportações de escravos na África Centro-Ocidental entre 1751-1850 (The Trans-Atlantic Slave Trade Database, em: www.slavevoyages.org).

Portos exportadores na África Centro-Ocidental

Ambriz

Benguela

Cabinda

Luanda

Entre os anos 1751-1800

14.796

117.506

48.528

397.101

Entre os anos 1801-1850

80.414

236.152

269.723

551.012

+443,4%

+100,9%

+455,8%

+38,7%

Enquanto o tráfico atlântico de escravos continuava a mostrar sua força nas primeiras décadas após sua proibição atlântica, no continente africano as rotas internas não haviam sido desmanteladas e continuavam a fornecer escravos aos centros exportadores na costa. A série de jihads, que se iniciaram por volta de 1804, também foi responsável pelo aumento no número de indivíduos escravizados e no incremento no comércio de escravos pelas rotas transaarianas e naquelas que levavam ao Mar Vermelho. Mais de 1.650.000 escravos teriam sido negociados por essas redes mercantis mulçumanas durante este período (LOVEJOY, 2011, p. 185).

Além de exportar uma quantidade crescente de seres humanos, esses Estados mulçumanos também passaram a empregar grandes quantidades de escravos na produção das mercadorias não somente para o dito comércio “legal” no Atlântico, mas também para o consumo interno. No Sudão Ocidental, por exemplo, o Califado de Sokoto – que compreendia grande parte da porção norte da atual Nigéria – empregava escravos na produção de algodão, que depois era transportado por centenas de quilômetros até onde ele seria fiado e tecido. Depois de prontos, esses têxteis eram transportados novamente por centenas de quilômetros para serem tingidos antes de serem levados aos mercados das regiões densamente povoadas de Kano e Zaria (LOVEJOY, 2011, p. 208). Mão de obra escrava era utilizada nos diversos processos de produção do algodão e dos tecidos, além do transporte e do comércio desses produtos. Uma estimativa feita por Lovejoy aponta que o total de escravos pertencentes ao Califado de Sokoto, no século XIX, representava um quarto da população total de 10 milhões de pessoas. Ou seja, somente neste Califado havia 2.5 milhões de escravos (LOVEJOY, 1989, p. 392).

O século XIX também é marcado pelos movimentos abolicionistas. Pressionadas especialmente pelo governo britânico, as nações europeias e americanas, que há séculos exploravam o comércio atlântico de escravos, foram aos poucos compelidas a proibir o comércio e atuar ativamente contra o contrabando de africanos escravizados (LOVEJOY, 2011, p. 136-140). Embora esses movimentos abolicionistas contassem com defensores apaixonados, havia uma clara relutância em acabar com o tráfico. No fim, os escravos não estavam sendo libertados por uma tomada de consciência sobre a injustiça deste tipo de exploração. Para além de qualquer sentimento humanista havia uma contradição entre as formas de exploração do ser humano adotadas pelos sistemas escravista e capitalista. O modo de produção escravista não sobreviveria a este conflito. 

A abolição dos escravos na África

A partir de meados do século XIX, o papel dos europeus na história da escravidão foi o de reduzir gradualmente os meios de escravização e distribuição. Apesar de uma mitologia da abolição, este papel não foi prontamente aceito. Se houve um agente passivo na história da escravidão durante o século XIX, foi a Europa, não a África. A África lutou para reformar a escravidão num contexto de mudança. A Europa fez o possível para eludir o seu compromisso com a abolição, relutantemente adotando a luta sempre que a conciliação de interesses provou ser impossível. A abolição foi por fim alcançada não tanto por causa do desejo de uma parte de acabar com a escravidão, mas porque o moderno sistema industrial e uma formação social baseada na escravidão eram incompatíveis. Em termos marxistas, o conflito estava baseado nas contradições entre diferentes modos de produção. A extinção da escravidão era inevitável no contexto de absorção a uma economia mundial capitalista (LOVEJOY, 2011, p. 244-245).