Qual a relação da Lei 13.010 2014 com a doutrina da proteção integral prevista no ECA?

A Lei nº 13.010, conhecida como Lei Menino Bernardo ou Lei da Palmada, completa sete anos no dia 26 de junho de 2021 e reacende a discussão sobre o direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou tratamento cruel ou degradante. Sancionada em 2014, a legislação marca um avanço para o Brasil ao alterar o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e estimular a educação não violenta.

O nome da lei é uma homenagem ao caso de Bernardo Boldrini, menino de 11 anos que foi cruelmente assassinado por overdose de medicamentos em abril de 2014, na cidade de Três Passos (RS). Os acusados são o pai e a madrasta de Bernardo, além de dois conhecidos do casal.

Ampliando a rede de proteção à criança e ao adolescente, a Lei Menino Bernardo determina que pais ou responsáveis que utilizarem meios violentos na correção dos infantes sejam advertidos sobre o caso e encaminhados ao programa oficial de proteção à família, tratamento psicológico ou psiquiátrico, e programas de orientação. Já a criança vítima da agressão deverá ser encaminhada a tratamento especializado de acordo com o caso; sendo essas medidas aplicadas pelo Conselho Tutelar e sem prejuízo de outras providências legais.

Em Alagoas, a política de garantia dos direitos de crianças e adolescentes é coordenada pela Secretaria de Estado de Prevenção à Violência (Seprev). Segundo a superintendente da Criança e do Adolescente da Seprev, Samylla Gouveia, existe ainda no Brasil a cultura de que o uso da força física é uma alternativa válida na correção infantil e a lei federal busca justamente desconstruir este pensamento.

“Desde a criação do ECA, em 1990, as crianças têm de fato seus direitos e deveres reconhecidos. No entanto, percebemos que, em muitos casos, esses direitos não são garantidos em sua totalidade, uma vez que existe uma questão cultural e educacional da família de que a correção pode ser feita com o uso da palmada. Essa legislação vem justamente para desmistificar esse pensamento e colocar a criança como protagonista do processo educacional, como um sujeito de direitos que precisa ter suas vontades respeitadas”, explica Samylla.

Dados da superintendência revelam que, em 2020, 348 crianças e adolescentes foram vítimas de violência física ou maus tratos e que até maio deste ano, 170 casos foram registrados.

Buscando a redução desses números em todo o país, a Lei Menino Bernardo prevê a inclusão de ações de orientação junto aos pais e responsáveis apontando alternativas ao castigo físico e ao tratamento inapropriado no processo educativo. Também propõe a formação continuada e a capacitação dos profissionais que trabalham no atendimento a crianças e adolescentes, objetivando o desenvolvimento e aprimoramento de suas competências para atuar na prevenção, identificação de evidências, diagnóstico e no enfrentamento a esse tipo de violência.

“Pais, responsáveis e profissionais precisam compreender o que a legislação do nosso país orienta e determina de forma ampla com relação à política da criança e do adolescente, bem como entender as questões comportamentais e sociais da criança para que esta proteção seja, de fato, integral”, concluiu Samylla Gouveia.

Olá amigos do Dizer o Direito,

Foi publicada, na semana passada, mais uma novidade legislativa.

Trata-se da Lei n.° 13.010/2014, que altera o ECA e estabelece que as crianças e os adolescentes têm o direito de serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel ou degradante.

A nova Lei tem sido chamada de “Lei da Palmada” ou “Lei Menino Bernardo”, em homenagem ao garoto Bernardo Uglione Boldrini, de 11 anos, que foi morto em abril deste ano, em Três Passos (RS), figurando como suspeitos do crime o pai e a madrasta da criança.

Vejamos o que dispõe a nova Lei:

Direito de ser educado sem o uso de castigo físico

A Lei n.° 13.010/2014 prevê que as crianças e os adolescentes têm o direito de serem educados e cuidados sem o uso de:

• de tratamento cruel ou degradante.

Quem deverá respeitar esse direito?

• os integrantes da família ampliada (exs: padrasto, madrasta);

• os responsáveis (ex: tutor);

• os agentes públicos executores de medidas socioeducativas (ex: funcionários dos centros de internação);

• qualquer pessoa encarregada de cuidar deles, tratá-los, educá-los ou protegê-los (exs: babás, professores).

O que é considerado “castigo físico” para os fins desta Lei?

Castigo físico é a ação de natureza disciplinar ou punitiva aplicada com o uso da força física que cause na criança ou adolescente:

Desse modo, a “palmada” dada em uma criança, mesmo que não cause lesão corporal, poderá ser considerada “castigo físico” se gerar sofrimento físico. Essa é a inovação da Lei. Isso porque o castigo físico que gera lesão corporal contra criança e adolescente sempre foi punido, inclusive com a previsão de crime (arts. 129 e 136 do Código Penal).

Por outro lado, é necessário dizer que a Lei aprovada não proíbe toda e qualquer palmada nas crianças e adolescentes. Somente é condenada a palmada que gere sofrimento físico ou lesão. Se a palmada for leve e não causar sofrimento ou lesão estará fora da incidência da lei. Sobre esse aspecto, vale ressaltar que o projeto original que tramitou no Congresso Nacional proibia expressamente toda e qualquer palmada, tendo havido, portanto, um abrandamento na versão final aprovada.

O que é considerado “tratamento cruel ou degradante” para os fins desta Lei?

Tratamento cruel ou degradante é aquele que:

c) ridiculariza a criança ou o adolescente.

Perceba, portanto, que a Lei n.° 13.010/2014 proíbe não apenas “palmadas”, ou seja, castigos físicos. Isso porque a Lei veda também qualquer forma de tratamento cruel ou degradante, o que pode acontecer mesmo sem contato físico, como no caso de agressões verbais, privação da criança de algo que ela goste muito etc.

O que acontece com quem utilizar de castigo físico ou tratamento cruel ou degradante como forma de educação contra a criança ou adolescente?

Os infratores estarão sujeitos, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, às seguintes medidas, que serão aplicadas de acordo com a gravidade do caso:

I - encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à família;

II - encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico;

III - encaminhamento a cursos ou programas de orientação;

IV - obrigação de encaminhar a criança a tratamento especializado;

As medidas acima previstas serão aplicadas pelo Conselho Tutelar, sem prejuízo de outras providências legais.

A conduta configura crime?

Depende. A Lei n.° 13.010/2014 não prevê nenhum crime. Não traz nenhuma sanção penal. Esse não era o seu objetivo. No entanto, a depender do caso concreto, o castigo físico aplicado ou o tratamento cruel ou degradante empregado poderá configurar algum crime previsto no Código Penal ou no ECA.

Ex1: se o castigo físico provocar lesão corporal, haverá punição com base no art. 129, § 9º do CP.

Ex2: o Código Penal também prevê que é crime “expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina” (art. 136).

Ex3: o art. 232 do ECA tipifica o delito de “submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento”.

O pai ou mãe agressor poderá perder o poder familiar por conta dessa conduta?

SIM. A Lei n.° 13.010/2014 não prevê, de forma expressa, a perda ou suspensão do poder familiar como sanção para o caso de castigo físico ou tratamento cruel ou degradante. No entanto, isso é possível, por meio de decisão judicial, se ficar provado que houve extremo excesso por parte do pai ou da mãe na imposição da disciplina. O tema é tratado pelo Código Civil:

Art. 1.638. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que:

I - castigar imoderadamente o filho;

Políticas públicas

A Lei determina que os entes federativos deverão elaborar políticas públicas e ações destinadas a coibir o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante e difundir formas não violentas de educação de crianças e de adolescentes.

Para isso, deverão ser adotadas as seguintes ações:

I - promoção de campanhas educativas;

II - integração de políticas e ações entre os órgãos responsáveis pela proteção e defesa dos direitos das crianças e adolescentes (Judiciário, MP, Defensoria, Conselho Tutelar etc.);

III - formação continuada e a capacitação dos profissionais de saúde, educação e assistência social para o enfrentamento de todas as formas de violência contra a criança e o adolescente;

IV - incentivo às práticas de resolução pacífica de conflitos;

V - inclusão, nas políticas públicas, de ações que visem a estimular alternativas ao uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante no processo educativo;

VI - realização de ações focados nas famílias em situação de violência.

Obs: as famílias com crianças e adolescentes com deficiência terão prioridade de atendimento nas ações e políticas públicas de prevenção e proteção.

A Lei n.° 13.010/2014 representa uma interferência indevida do Estado nas relações familiares?

NÃO. Essa é a opinião da esmagadora maioria dos infancistas sobre o tema. Segundo a CF/88, é dever, não apenas da família, mas também da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à dignidade e ao respeito, além de colocá-los a salvo de toda forma de violência, crueldade e opressão (art. 227).

Veja o que pensam Rossato, Lépore e Sanches:

“Vale destacar que a maioria dos especialistas da medicina, psicologia, serviço social e pedagogia entende que a alteração legislativa é benéfica porque nenhuma forma de castigo física ou tratamento cruel ou degradante é pressuposto para a educação ou convivência familiar e comunitária.

Ademais, um castigo físico considerado moderado ou irrelevante quase sempre acaba sendo o primeiro passo para a prática de atos violentos de maior intensidade e envergadura, desembocando em sérios prejuízos físicos e psicológicos às crianças e aos adolescentes.

Os argumentos no sentido que o Estado não pode interferir no seio da família são fundados na ideia tutelar e da doutrina da situação irregular que vigiam na época do Código Melo de Matos, de 1927, e do Código de Menores, de 1979, que tomavam a criança como objeto de interesse dos pais.

Entretanto, com a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente passou a vigorar a doutrina da proteção integral, segundo a qual crianças e adolescente são sujeitos de direitos em estágio peculiar de desenvolvimento, credores de todos os direitos fundamentais previstos aos adultos, além de outras garantias especiais, a exemplo da diversão e da brincadeira.

Sendo assim, a liberdade, o respeito e a dignidade de crianças e adolescentes são direitos que devem ser respeitados por todos, inclusive pais, e o Estado deve se valer de todos os meios lícitos para garanti-los.

A liberdade de exercício do poder familiar só pode existir na medida do respeito aos direitos fundamentais de crianças e adolescentes.” (ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo; CUNHA, Rogério Sanches. Estatuto da Criança e do Adolescente. Comentado artigo por artigo. 6ª ed., São Paulo: RT, 2014, p. 159-160).

O que muda, na prática, com a Lei n.° 13.010/2014?

Praticamente nada. Os castigos físicos e o tratamento cruel ou degradante já eram punidos por outras normas existentes, como o Código Civil, o Código Penal e o próprio ECA. A Lei n.° 13.010/2014, que não cominou sanções severas aos eventuais infratores, assumiu um caráter mais pedagógico e programático, lançando as bases para a reflexão e o debate sobre o tema.

Márcio André Lopes Cavalcante

Professor

Clique aqui para conferir a íntegra da Lei n.° 13.010/2014.


Qual a relação da lei 13010 em comento com a doutrina da proteção integral prevista no ECA?

Uma interpretação literal e apressada pode levar a conclusão de que referido dispositivo não está de acordo com o princípio da proteção integral, posto que exclui da vedação as crianças e os adolescentes vítimas de atos infracionais, com nítida discriminação, nos moldes do revogado Código de Menores.

O que e proteção integral no ECA?

A proteção integral orienta e prescreve direitos às pessoas em desenvolvimento, impondo deveres à sociedade, inclusive na implantação das políticas públicas, de modo a contemplar essa situação e proporcionar a construção de um panorama jurídico especial às crianças e adolescentes.

Quais são os principais aspectos que diferenciam a doutrina da situação irregular e a doutrina da proteção integral?

Diferentemente da doutrina da situação irregular, onde o adolescente era estigmatizado como um mero objeto de direitos, na doutrina da proteção integral, o adolescente ganha status de sujeito de direitos. A Doutrina da Proteção Integral se caracteriza pela amplitude de sua proteção.

Em quais princípios se assenta a doutrina jurídica da proteção integral adotada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente?

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo ...