Por que o texto Eu sei mas não devia pode ser considerado uma crônica?

Leia um trecho de uma crônica de Marina  Colasanti. 

Por que o texto Eu sei mas não devia pode ser considerado uma crônica?


Eu sei, mas não devia 

Eu sei que a gente se acostuma. 

Mas não devia. 

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão. 

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. 

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.(...) 

(COLASANTI, Marina. Eu sei, mas não devia. Rio de Janeiro: Roeco, 1996. p. 9.)

a) Releia o título da crônica de Marina Colasanti: Eu sei, mas não devia. O que você observou do ponto de vista sintático em relação à forma verbal? 

b) Em sua opinião, com qual objetivo essa estrutura sintática foi empregada? 

c) Qual é o trecho da crônica que explicita o complemento da forma verbal sei? 

d) Classifique a oração que completa o sentido da forma verbal sei. 

e) Qual é a função semântica, ou seja, de sentido, da oração coordenada sindética adversativa Mas não devia no contexto da crônica? 

f) Como você interpreta o uso do pronome pessoal do caso reto eu no título e da expressão a gente no 

desenvolvimento da crônica? 

Gabarito

a) A autora omitiu o complemento da forma verbal sei. 

b) Para provocar curiosidade e atrair a atenção do leitor. 

c) Eu sei que a gente se acostuma. 

d) Oração subordinada substantiva objetiva direta. 

e) Contrapor-se à acomodação explicitada na oração A gente se acostuma. 

f) No título, o narrador se refere a si mesmo, e, no desenvolvimento da crônica, com o uso de a gente ele inclui outras pessoas que, como ele, agem de forma considerada conformista. 

Por que o texto Eu sei mas não devia pode ser considerado uma crônica?

The Sharpest Knife by Nickie Zimov

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

Sobre a autora

Por que o texto Eu sei mas não devia pode ser considerado uma crônica?

Marina Colasanti nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11 anos na Itália e desde então vive no Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com Eu sei mas não devia e também por Rota de Colisão. Dentre outros escreveu E por falar em Amor; Contos de Amor Rasgados; Aqui entre nós, Intimidade Pública, Eu Sozinha, Zooilógico, A Morada do Ser, A nova Mulher, Mulher daqui pra Frente e O leopardo é um animal delicado. Escreve, também, para revistas femininas e constantemente é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil. É casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna.

(O texto acima foi extraído do livro "Eu sei, mas não devia", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1996, pág. 09.)


Qual a ideia central do texto Eu sei mas não devia?

"A ideia de nos acostumarmos pode ser muito perigosa. A gente tem sim como ser humano esta capacidade de adaptação que é fundamental, mas a gente tem que tomar cuidado para não se acostumar com duas coisas: nem com o belo, nem com o que não faz sentido, com o que não tem propósito.

Qual o tema da crônica Eu sei mas não devia?

Este texto trata se do cotidiano das pessoas principalmente aquelas que correm no dia a dia sem olhar para os lados.

Em que Marina Colasanti se inspirou para escrever a crônica um mundo lindo?

Em que Marina Colasanti se inspirou para escrever essa crônica? Ela se inspirou em uma notícia de jornal que relatava a morte do último caracol da Polinésia: “com ele, extinguiu-se a sua espécie”.

O que a gente se acostuma mas não devia?

Mas não devia. A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E por não ter vista, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E por não abrir as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz.